Na Grécia Antiga, a realização dos Jogos Olímpicos era sempre precedida da proclamação de uma “trégua sagrada”. A partir desse momento, ficavam proibidos os actos de guerra entre as várias cidades e os atletas e espectadores ganhavam o direito a viajar a Olímpia com toda a tranquilidade e segurança. Toda e qualquer violação ao cessar-fogo era considerada uma afronta a Zeus, o deus supremo a quem a manifestação desportiva era dedicada.
Desde 1992, por ocasião dos Jogos de Barcelona e sob a pressão da eclosão da guerra civil na ex-Jugoslávia, o Comité Olímpico Internacional recuperou a ideia da trégua, de forma a garantir a segurança de atletas e permitir que as competições se desenrolem de uma forma livre e pacífica. Em cada ano olímpico, a Assembleia Geral das Nações Unidas tem patrocinado essa trégua. Ainda em 2016, durante os Jogos do Rio, a trégua vigorou no período de sete dias antes da abertura dos Olímpicos e até sete dias depois do encerramento dos Paralímpicos, com o “objetivo de proteger os interesses dos atletas e do desporto em geral”.
Na guerra em que o mundo está envolvido, contra a Covid-19, não se podem dar tréguas. Como demonstram os números aterradores em Itália, Espanha e, dentro em breve, nos EUA e noutras nações que muitos julgavam poderosas e imunes a qualquer perigo, esta guerra exige que toda a Humanidade cerre fileiras, se mantenha unida e focada no mesmo objetivo.
Os atletas olímpicos e os espectadores, como sucedia na Grécia Antiga, precisam de ser protegidos no seu percurso até à Olímpia que, desta vez, estava marcada para Tóquio, a partir de 24 de julho. A verdade é que, agora, nenhum país ou entidade lhes pode garantir essa segurança. Por mais que os organizadores japoneses insistam que, dentro de quatro meses, a cidade estará imune ao vírus ou que o Comité Olímpico Internacional continue a dizer que ainda não chegou a altura de mudar de planos, a realidade desta pandemia grita mais alto do que qualquer argumento.
Esta epidemia – vamos lá repetir as vezes que forem necessárias – não distingue fronteiras, regimes, classes sociais, etnias ou até climas. Enquanto todos os países não declararem a guerra ganha, ninguém pode afirmar que a sua nação ou cidade são seguros – e já se percebeu que isso, provavelmente, só sucederá quando existir uma vacina, o que no mínimo demorará um ano.
Se há algo que distingue os atletas de elite é a sua capacidade para superar adversidades. Também estão habituados a refazer os seus objetivos, consoante as circunstâncias. E o que todos querem quando chegam aos Jogos Olímpicos é o poderem mostrar-se na sua melhor forma de sempre, exclusivamente focados na sua competição e preparados para alcançar as marcas mais impossíveis que conseguirem. É por isso que os Jogos Olímpicos são o maior acontecimento desportivo do planeta – mas é isso que agora não pode ser assegurado.
A Carta Olímpica diz, nos seus princípios fundamentais, que o “Olimpismo propõe-se criar um estilo de vida baseado na alegria do esforço, no valor educativo do bom exemplo e no respeito pelos princípios éticos fundamentais universais”. Manter os Jogos Olímpicos de Tóquio nas datas previstas, nestas condições, seria o pior exemplo possível. A guerra agora tem de ser outra e para ser ganha vai precisar do melhor espírito olímpico: aquele que busca o “desenvolvimento harmonioso do Homem” para promover “uma sociedade pacífica preocupada com a preservação da dignidade humana”.