O que até há poucos dias parecia impensável aconteceu mesmo. O novo coronavírus já fez mais mortos em Itália (3405) do que na China (3245). Uma estatística que vem confirmar que o estado transalpino e a Europa não estavam minimamente preparados para enfrentar uma situação como a atual. Nos últimos dias, várias personalidades têm dito que ninguém poderia prever uma tragédia com estas dimensões e que nenhum país dispõe de meios eficazes para lidar com uma doença nova e imprevisível.
Lamentavelmente, estão a mentir. Desde o início dos tempos que a humanidade se vê confrontada com pragas, pestes e pandemias. Os ciclos da natureza e da vida são assim mesmo, mas nós não aprendemos. É muito mais fácil responsabilizarmos os morcegos e os pangolins chineses ou acusarmos Xi Jinping de ser um ditador do pior. Ou repetirmos que Donald Trump é um crápula que cortou o financiamento ao departamento de Segurança Global de Saúde dos EUA e que forçou a demissão, em maio de 2018, do almirante Timothy Ziemer, oficial que tinha pergaminhos no combate à malária e que sensibilizou George W. Bush e Barack Obama para a ameaça representada pelas doenças infectocontagiosas.
Em meados de setembro, António Guterres, o secretário geral das Nações Unidas, recebeu um documento explosivo no seu gabinete em Manhattan. Intitulado A World at Risk (Um Mundo em Risco), o relatório era o resultado de dois anos de intenso trabalho da Global Preparedness Monitoring Board (GPMB), uma entidade pouco conhecida liderada pelo diplomata senegalês Elhadj As Sy e pela norueguesa Gro Harlem Brundtland, ex-diretora geral da Organização Mundial de Saúde e ex-primeira-ministra da Noruega.
As conclusões aí reunidas por um painel de cientistas e peritos em questões sanitárias e de segurança eram muito simples: o mundo deveria preparar-se quanto antes para uma pandemia, uma “ameaça real” em que um qualquer agente patogénico poderia matar “até 80 milhões de pessoas” e “fazer desaparecer quase cinco por cento” da economia global. “A falta de preparação deve-se à contínua falta de vontade política a todos os níveis. (…) Os líderes nacionais costumam responder às crises de saúde quando o medo e o pânico se instalam, mas a maior parte dos países não antecipa estes cenários nem disponibiliza os meios necessários para evitar que estes surtos se convertam em catástrofes”, explicava-se. Vamos repetir as datas. Setembro de 2019. Ou seja, há seis meses. Na altura ninguém deu grande importância ao assunto, apesar de António Guterres e a ONU terem tornado o relatório público e acessível ao comum dos mortais.
A Coreia do Sul, Singapura e Taiwan – por terem aprendido da pior forma com a epidemia de SARS, em 2003 – tomaram as cautelas possíveis e demonstraram que se pode mitigar os efeitos do covid-19, com transparência, civismo e disciplina. A China, pelo contrário, teve de recorrer à sua gigantesca máquina de repressão, censura e propaganda para conter o vírus na cidade de Wuhan, na província de Hubei e no resto do país, sacrificando os direitos mais básicos de quase 800 milhões de cidadãos.
Portugal, Espanha, Itália, França e até os países nórdicos não podem seguir os exemplos coreano e chinês. Claro que podem invocar os respetivos serviços nacionais de saúde, universais e gratuitos, para combater a doença. Só que décadas de desinvestimento, incúria e austeridade fragilizaram por completo o Velho Continente. No início deste mês, o liberal Financial Times demonstrava como o investimento público no Reino Unido tem vindo sempre a degradar-se desde o governo trabalhista de Clement Attlee, em 1951, para cair a pique com o thatcherismo e nunca mais recuperar.
Até há poucas semanas, em Lisboa, Bruxelas, Berlim ou Copenhaga, todos os governantes nos explicavam que as metas orçamentais eram para cumprir, apesar dos sinais claros de que os hospitais e outras infraestruras mereciam melhor tratamento.
Agora, com a pandemia e as incertezas a alastrarem, os mesmos dirigentes prometem aos seus governados que haverá dinheiro para ultrapassar esta nova crise que a chanceler Angela Merkel diz ser a pior desde a Segunda Guerra Mundial. Oxalá não tenham de morrer milhões para ficar claro que estamos a meio de uma catástrofe que nós próprios tornamos possível.