Não há dúvida de que a comunicação do Primeiro-Ministro na noite do dia 12 de março e as deliberações do Conselho de Ministros que a seguir foram conhecidas, marcaram o ponto de viragem no modo como o COVID- 19 estava a ser encarado pelas autoridades portuguesas: da mensagem tranquilizadora e das ações de contenção, passamos para uma nova fase, em que a dramatização, o apelo sério a comportamentos sociais condizentes com a gravidade da situação e a imposição de condicionamentos à nossa vida pessoal e coletiva, foram pública e solenemente assumidos.
As razões para esta mudança de atitude do governo tiveram por base a evolução deste vírus em todo o mundo, mas sobretudo na Europa, e às recomendações que a OMS e as agências europeias, em geral, tomaram. Foi declarada a situação de pandemia, muitos países passaram a classificar a situação como estado de alerta e/ou de emergência e, temos assistido, em cascata, ao encerramento de fronteiras. No nosso país, a Ordem dos Médicos, os diretores das escolas médicas, os professores e os pais dos alunos, entre outras entidades, do desporto às empresas, exerceram nos últimos dias uma forte pressão pública para que fossem tomadas medidas de mitigação mais enérgicas e radicais.
Este vírus atingiu já, à hora que escrevo, mais de 169 mil pessoas, em mais de 130 países, com mais de 5 mil mortos, mas, felizmente, com mais de 70 mil doentes já curados. Para nós, portugueses, o mais preocupante é o que se passa na região europeia, com a Itália, já com mais de 15 mil infetados e mais de mil mortos, a ocupar o 2º lugar na escala desta infeção, logo a seguir à China. Em 5º lugar, a seguir ao Irão e à Coreia do Sul, vem a Espanha, com cerca de 4 mil infetados e, aproximadamente, 100 óbitos. Olhando para os níveis de letalidade deste vírus percebemos que, em termos globais, é da ordem dos 3,7%, sendo na Itália de 6,7% e em Espanha de 2,3%. A excecional taxa de mortalidade verificada em Itália, de onde parecem ter vindo os primeiros casos registados em Portugal, faz supor um vírus com graus diferentes de virulência. Esta evolução explosiva e as incertezas que pairam na comunidade científica sobre a sua origem, forma de transmissão, definição de grupos de risco, duração da doença, duração do surto, letalidade e necessidades de tratamento, tem levado todos os países a adotar medidas cada vez mais duras e limitadoras da vida em sociedade.
Os impactos destas decisões na vida económica, com as sucessivas quarentenas decretadas por empresas e governos e as recomendações para restringir ao mínimo as deslocações para fora de casa (viagens, compras, lazer, restauração,etc.), podem paralisar a atividade das empresas e pôr em risco milhões de postos de trabalho em todo o mundo, com consequências incalculáveis para a criação de riqueza e para o desenvolvimento humano. Por estas razões, muitos países tardaram em adotar medidas sucessivamente mais duras e radicais, tentando manter o justo equilíbrio entre a estabilidade socio-económica e o controlo da doença. Devemos ter compreensão por essas posições, muito baseadas na racionalidade e experiência dos especialistas.
No nosso caso foi exatamente isso que sucedeu até ao dia 12 de março: forte liderança técnica, pedagógica e serena por parte da DGS e da sua Diretora-Geral, Graça Freitas, acompanhamento político por parte da Ministra da Saúde, que não regateou esforços em vir dar a cara sempre que necessário, e o apoio do Primeiro-Ministro, pontual mas atento.
Com o evoluir da situação, o aumento de novos casos (passamos de um doente a 2 de março, para mais de 100 a 13 de março) num ritmo de progressão crescente e inexorável, e a pressão das corporações da saúde e do ensino, o governo não podia continuar na sua própria fase de contenção política, sob pena de ser ultrapassado pelos acontecimentos, como aconteceu com o encerramento antecipado de escolas médicas, colégios privados e estabelecimentos do ensino universitário e secundário.
As medidas saídas do Conselho de Ministros do dia 12, representam, assim, uma resposta aos acontecimentos, em que o governo manifesta a sua capacidade de liderança e de coordenação de um processo muito complexo, que se arriscava a ter na sociedade civil e nas corporações a chave para os problemas, recuperando deste modo o seu papel indelegável de liderança política, essencial para a defesa do interesse público em todos os momentos da nossa vida. E, como se viu, a crise provocada pelo novo coronavírus, pressupõe a assunção de medidas articuladas, num âmbito alargado que em muito extravasa a área da saúde, entre restrições e compensações, quer para quem trabalha, que para quem estuda, quer para quem investe, quer para a vida familiar, num processo decisional integrado, como se anunciou na sequência do Conselho de Ministros já referido.
Olhando estritamente para as questões operacionais que esta pandemia coloca aos serviços de saúde, não tenho a visão pessimista que por vezes perpassa na opinião pública e que, não raras vezes, vem do interior das próprias organizações.
Importa sinalizar que esta epidemia, já declarada de natureza pandémica, é um novo acontecimento epidemiológico para o qual ninguém está preparado. A origem do vírus, as suas mutações, a forma de contágio, o ritmo de transmissão, as consequências para a saúde dos infetados, a sua letalidade, são matérias para as quais os especialistas não têm ainda respostas firmes e categóricas. Estamos todos – cientistas, profissionais de saúde, população em geral, doentes e governos – a aprender todos os dias e a adaptar as nossas estratégias e os nossos procedimentos ao modo como a realidade vai evoluindo.
Num processo de aprendizagem com constantes desenvolvimentos e algumas surpresas, não é possível, nem seria curial, traçar um plano de prevenção e de ataque rigoroso, minucioso e com todas as etapas e operações pré-definidas. Temos o privilégio de viver num país com um serviço público de saúde forte, de acesso universal e tendencialmente gratuito, que dispõe de um número de médicos e outros profissionais confortável e muito bem preparados, e que trata mais de 80% dos doentes internados e cerca de 90% dos doentes idosos. Por outro lado, temos o maior contingente de doentes nos serviços de urgência públicos, em toda a Europa, com uma taxa de internamento diária que corresponde a cerca de 2 mil novos casos e um número de observações urgentes diário, próximo dos 20 mil utentes. A capacidade dos nossos serviços para absorver esta elevada procura urgente dá-nos também um enorme traquejo para lidar com fluxos de procura não programados, o que também nos ajudará a gerir melhor a epidemia do COVID19. Importa referir que mais de 50% da nossa procura de urgência se traduz em situações simples e sem gravidade, que numa situação crítica com o novo vírus, poderá ficar em casa ou dirigir-se aos cuidados primários, como, aliás, deveria ser. Será decisivo para que a nossa capacidade de resposta seja efetiva, criar urgentemente condições para que, com o aumento significativo de casos, muitos destes doentes possam ser vistos e monitorizados em suas casas, pois em 80% das situações serão quadros clínicos de baixa gravidade e facilmente recuperáveis. Neste cenário, a principal frente de ataque deveria ser os cuidados de saúde primários e os médicos e enfermeiros de família. Este conjunto de profissionais deveria dedicar-se preferencialmente a atender e visitar os casos sintomáticos da sua área de responsabilidade e, assim, travar as idas aos hospitais da casuística mais benigna. Isso pressupõe uma capacidade de mobilização dos profissionais para fora dos seus gabinetes e das suas USF, o que terá que ser devidamente organizado e bem aceite. Em contrapartida, os hospitais ficariam mais libertos para atender a casuística mais complexa e internar os casos de maior gravidade.
Confio nas capacidades instaladas no SNS, na competência dos nossos profissionais e na sua disponibilidade de entrega e de dedicação perante situações críticas. As provas prestadas até agora têm sido irrefutáveis. Devemos acompanhar com atenção o evoluir desta epidemia e fazer, em cada momento, o mais adequado face à realidade que se nos apresenta. Temos ainda uma reserva de decisões em matéria de recrutamento de profissionais, mobilização de estruturas públicas e privadas e de procedimentos no ataque á doença, que poderão contribuir para mitigar os danos e reforçar a capacidade de resposta.
Tivemos o azar de ter o nosso Presidente da República temporariamente afastado das lides presidenciais que tão bem desempenha. Mas faz falta o seu exemplo de coragem e a sua mensagem de tranquilidade, para nos dar alento e serenidade.
Entrarmos nesta batalha divididos, alarmados e com medo, não me parece ser a melhor estratégia. Não é o momento para reivindicações sindicais e para apontar o dedo às pequenas falhas. Temos que estar unidos no essencial e todos seremos poucos nessa luta.