Nas três últimas décadas os hospitais portugueses sofreram transformações estatutárias e estruturais significativas. Todavia, não se procedeu a qualquer avaliação dos seus impactos nos domínios habitualmente utilizados: qualidade clínica, acesso, eficiência, produtividade, situação económico- financeira e satisfação dos doentes.
Já anteriormente (em 1987) tinha ocorrido a inauguração de um novo hospital em Lisboa – o Hospital de São Francisco Xavier – de acordo com um modelo assaz original: adquiriu-se uma antiga clinica privada no Restelo e transformou-se num “novo” hospital público. Em 1995, a entrega da gestão do novo Hospital da Amadora-Sintra, construído pelo Estado, a um grupo privado, gerou grande controvérsia e foi a primeira experiência de PPP na saúde, ainda que ao arrepio das melhores práticas. As principais vantagens das PPP assentam no binómio construção/exploração e, neste caso, fez-se o esforço público inicial de construção e só depois se passou para a gestão privada. Mais uma originalidade à portuguesa…
Ainda na década de 90, abriu-se o primeiro hospital com estatuto empresarial – O Hospital de São Sebastião, em Santa Maria da Feira. O modelo de gestão e a flexibilidade remuneratória associada ao desempenho, permitiram depositar muitas esperanças em ver esse modelo alargado paulatinamente aos outros hospitais da rede pública. A eficiência e a produtividade destacavam-se positivamente no contexto dos hospitais portugueses e os profissionais tinham orgulho redobrado em trabalhar naquele hospital. Estranhamente, não se procedeu a uma avaliação rigorosa sobre os seus sucessos e insucessos e, pior do que isso, não se promoveu a transferência dessa experiência para hospitais já existentes ou para novos hospitais.
Nessa mesma época foi criada a primeira ULS (Unidade Local de Saúde), em Matosinhos. Era um conceito novo de prestação de cuidados, com o objetivo de promover a integração vertical de serviços de atenção primária com os cuidados hospitalares, tendo em conta uma resposta global, contínua e mais acessível e eficiente aos cidadãos daquele território. Anos depois, tal experiência consolidou-se com mais 7 ULS, espalhadas pelo país, do Alto Minho ao Baixo Alentejo. Mais uma vez, não se procedeu a uma avaliação dessas experiências, sendo que, em boa verdade, também nunca se criaram os mecanismos de integração clínica que se esperavam. Cuidados primários e hospitalares continuaram separados, sem a exploração das sinergias e outras potencialidades que o modelo institucional poderia propiciar. Os resultados ficaram, portanto, muito aquém do que se desejava.
Na primeira década deste século foram constituídas as primeiras SA (Sociedades Anónimas) Hospitalares. Essas unidades eram geridas, em muitos domínios, como empresas, com grande autonomia, designadamente na sua capacidade de contratar pessoal e pagar salários “fora” das careiras profissionais, baseado no mérito e na produtividade. Os horários poderiam também ser de duração variável. Os hospitais SA passaram a disputar os melhores profissionais, atraindo-os com propostas competitivas. Houve grandes mudanças na oferta hospitalar, sem critérios de racionalidade e sem planeamento, e os resultados revelaram-se pouco interessantes: competição, sem criação de valor, entre os hospitais, aumento de custos, reconstrução de equipas. Estas experiências não foram devidamente avaliadas, registando-se, então, uma grande controvérsia ideológica sobre a eventual privatização pretendida com o modelo SA (a passagem de ações para o setor privado, poderia ser o passo seguinte).
Por esta razão, o novo governo PS (em 2005) encetou um processo de reversão do modelo SA, mas aproveitando alguns dos pressupostos que lhe estiveram na base. Criaram-se então os hospitais EPE (Entidades Públicas Empresariais), que pretendiam manter a autonomia gestionária e de liberdade contratual, com prémios e incentivos.
Pouco tempo depois, percebeu-se que a autonomia gestionária e a ideia de um contrato, em que quem geria os hospitais tinha autonomia contratual ao mesmo nível da entidade contratante (o SNS, através do Ministério da Saúde), não passavam de uma figura de retórica. Depois, as remunerações dos profissionais passaram a ser, de novo, as das carreiras públicas e tudo voltou a um modelo muito semelhante ao do setor público administrativo, como hoje todos reconhecem.
Mas foi também a partir de 2005 que se deu a maior transformação no mapa hospitalar português: passamos de cerca de 90 instituições hospitalares para 42, graças a um processo de fusões sucessivas de vários hospitais em Centros Hospitalares.
Julgava-se, então, e até como forma de replicar o que se passava no Reino Unido, que a junção de vários hospitais de uma região numa única Instituição poderia ter múltiplas vantagens: reduzia-se, desde logo, a despesa com dirigentes dos Conselhos de Administração; potenciava-se massa crítica, com a possibilidade de criar serviços ou departamentos com mais escala, mais atividade e, consequentemente, mais experiência e mais qualidade; aumentava-se a eficiência técnica, com a melhor distribuição dos custos fixos, eliminação de tarefas redundantes e maior produtividade dos profissionais; possibilitava-se o desenvolvimento estratégico de um serviço mais integrado, com novas formas de organização do trabalho clínico e a exploração de complementaridades no diagnóstico e no tratamento. Em resumo, baixavam-se custos e promovia-se a qualidade, o acesso e a noção de serviço ao cliente. Nenhum governo desdenharia esta autêntica galinha dos ovos de ouro. Haveria sempre algumas questões adversas a ponderar, mas as vantagens pareciam claramente suplantar as dificuldades. Pois bem, em nenhum caso se procedeu à avaliação dos resultados dos novos centros hospitalares, face à existência autónoma dos hospitais que lhes deram forma ou na comparação com os hospitais “solitários”.
Um dos principais quesitos na criação de centros hospitalares tem a ver com a criação de níveis de governação intermédia, que deem consistência à gestão e moralizem o trabalho em cada unidade física integrada. Na nossa experiência isso não foi devidamente acautelado, e assistiu-se a um efeito centrípeto da gestão à volta de um polo dominante e à secundarização das restantes estruturas. Essa marca foi fatal para o desenvolvimento harmonioso de muitos centros hospitalares.
Se houve experiências que deram resultados sofríveis, outras houve que se revelaram fatores de entropia e causadoras de novos problemas. Não se regista qualquer evidência que nos diga que os centros hospitalares permitiram a esses hospitais passar a apresentar melhores resultados. E, curiosamente, nas áreas da eficiência e da produtividade, os últimos resultados conhecidos de 2019 (acumulados a setembro), parecem mostrar que os hospitais “stand-alone” têm melhor desempenho.
Foi em 2010 que se iniciaram as novas experiências de gestão de hospitais em PPP (Parceria Público- Privado, de construção e exploração) com o novo Hospital de Cascais, e que depois se alargaram a mais três unidades hospitalares e aos Centros de Reabilitação do Sul e do Norte. Foi uma solução temerária de privatização da gestão, mas muito influenciada pela necessidade de modernizar a nossa rede hospitalar com a ajuda do financiamento privado, a pagar em 30 anos. Estas experiências foram todas globalmente positivas no que se refere aos custos, à eficiência e à qualidade. E ao contrário dos outros modelos, este foi bem escrutinado pelas ARS, pela UTAP e pelo Tribunal de Contas, sempre com pareceres positivos. Mas estas avaliações de nada serviram e as PPP estão hoje a caminho da extinção, sem honra nem glória, quando poderiam ser excelentes exemplos de benchmarking para a gestão pública.
Este percurso de transformação das estruturas hospitalares portuguesas é bem a marca de água da nossa proverbial cultura: muda-se porque nos parece melhor, porque é moda ou porque algum iluminado pensou e fez. Não se preparam as condições para que as mudanças produzam os resultados pretendidos. Não se acompanham as mudanças e não se avaliam os seus resultados. Ironicamente, quando, por exceção, se avalia e se montam dispositivos sérios de acompanhamento, esse trabalho não serve para nada e tomam-se decisões contrárias à evidência. Um absurdo!
Seria tempo de avaliarmos todas estas experiências, perceber o que correu bem e o que correu mal, melhorar os modelos que têm potencial e abandonar os que se revelem contraproducentes. As questões da autonomia da gestão hospitalar, da genuinidade da contratualização, das políticas de gestão dos recursos humanos e dos serviços clínicos, a par dos crónicos deficits de quase todos os hospitais, pressupõem uma visão mais alargada da rede hospitalar, preferencialmente integrada com a rede dos cuidados de saúde primários.