De que me vale fazer-me de durona se ele roubou o meu coração (e com ele o meu tempo, o meu colo e, muitas vezes, a minha cama)? É que, apesar de ter consciência da minha embriaguez, vivo esta adoração abnegadamenteUm ano de Romeu. Trezentos e sessenta e cinco dias vividos minuto a minuto, intensamente, desde o dia em que chegou, com as mãos enormes, vivinho da silva. Podia dizer que passou a correr e, de uma certa perspetiva, é verdade. Mas, ao mesmo tempo, por tanto que vivi de transformador, foi um ano que valeu por muitos. Até porque dormi menos do que o habitual, o que faz com que, efetivamente, tenha sido o ano mais vivido da minha vida em número de horas “úteis”.
Somos o mamífero mais dependente e menos desenvolvido à nascença, mas é impressionante a quantidade de coisas que aprendemos num só ano de vida, e a velocidade da nossa evolução cognitiva e motora. Em poucos meses, passamos de um serzinho sonolento que mama e pouco mais a uma criança ágil que esboça palavras e faz gracinhas, mais do que duplicamos o nosso peso, absorvemos informação avidamente e, de repente, temos dentes para mastigar comida de verdade.
Claro que isto tudo é à custa de uma dedicação absoluta dos progenitores, num processo de abdução física, mental e espiritual. Foi há um ano que entrei nessa missão. Viver em função do seu bem-estar, devota. Não houve noite que tenhamos passado separados. Foi um ano de amamentação. Um ano de atenção. Um ano de mim, quase totalmente dedicado a ele. E só há um “quase” porque decidi acabar um disco pelo meio.
Não vou mentir: estou exausta, mas valeu tudo a pena e podia agora desfiar todo um rosário de clichês materno-românticos, do tipo: ele é a coisa mais linda do mundo (eu sei que todas as mães dizem isso, mas alguma havia de ter razão); gosto mais dele a cada dia e, a cada dia, gostar mais dele parece cada vez mais impossível; é como se o meu coração batesse fora do peito; por muito que o dia esteja difícil, o sorriso dele basta para iluminar o mundo imediatamente, e todas essas verdades-verdadinhas-verdadeiras que só são clichês porque são mesmo verdade com V grande.
Está na idade de mexer em tudo. De tirar a terra dos vasos. De querer tocar na água da sanita. De puxar os fios elétricos e de atirar tudo ao chão. Aprendeu a morder. Percebe cada vez mais o significado das palavras e é cada vez mais destro com as mãos. Tem uma covinha só de um lado da bochecha como eu. Tem o nariz, os olhos e as sobrancelhas do pai. Acorda todos os dias sem uma das meias, como eu. É ágil como o pai. É loiro como eu. Gosta de música como o pai. Gosta de pão como todos os portugueses. Faz o som do tigre. Rrrrau. Abre e fecha a boca para imitar os peixes. Sopra na minha barriga para fazer barulhinhos. Muge como a vaca.
Disse mamã pela primeira vez no dia de Natal. Também já diz papá e bú (que é avô em portuense) e cocó (como todas as crianças com sentido de humor). Não bate palmas (como costumam fazer os bebés da idade dele). Começa a querer andar. Adora as canções da Rua Sésamo. Detesta andar de carro. Sabe dançar. Ri de excitação quando percebe que vai tomar banho e depois chora porque não quer sair. Tem os olhos cinzentos, mas talvez ainda se definam num castanho-normal. Gosta muito de livros. Resiste com todas as suas forças à mudança da fralda. Ri à gargalhada quando alguém imita um peru. Aponta com o indicador o caminho que quer seguir e as coisas que quer alcançar. E eu, como já perceberam pelos últimos parágrafos, ando tonta de ternura.
De que me vale fazer-me de durona se ele roubou o meu coração (e com ele o meu tempo, o meu colo e, muitas vezes, a minha cama)? É que, apesar de ter consciência da minha embriaguez, vivo esta adoração abnegadamente. Só me falta fazer como aquelas mães que tatuam o nome dos filhos e andam com a sua foto na carteira. Em vez disso, escrevi um poema. Chama-se “Mãegalomania” e vai assim:
Eu gosto tanto de ti
Que chego a suspeitar
Que se criaram todas as conchas do mar
Só para fazer os botões madrepérola
Do teu casaquinho.
(Crónica publicada na VISÃO 1407 de 20 de fevereiro)