Eu consagro a minha existência ao gesto contínuo de dar voz, seguimento, consequência, forma às ideias que me assaltam a mente e o espírito. Normalmente, sai em formato canção. Mas eu não vivo a vida dum poeta que entrega os seus dias à ociosa contemplação. Não vivo a vida dos meus heróis. A minha vida acabou por não adotar os maneirismos dum criativo. Os meus dias são pequenos, rasteiros, rotineiros, indignos de alguém que consagra a sua existência a dar voz, seguimento, consequência, forma às ideias que assaltam a sua mente, o seu espírito. Eu adoro os meus dias, vivo em constante estado de graça. Agradeço a toda a hora todas as horas dos meus dias. Acordo sempre à mesma hora, ainda antes do sol. Pequenos-almoços, idas para as escolas, corrida, chuveiro, estúdio, almoços, estúdio, idas à escola, trabalhos de casa, jantar, cama. Todos os meus dias são assim. São dias de missão, junto da minha mulher. Decidimos entregar os nossos melhores esforços a esta rotina, a esta ideia que julgamos digna, a de uma família. É um ciclo diário, sempre igual, lavar, sujar, voltar a lavar, pôr, repor, usar, deitar fora, sempre tudo muito igual, muito rotineiro, tudo sempre muito maravilhoso. Não há espaço para um segundo que seja de boémia poética, niilismo onírico, retiros num moinho abandonado junto ao qual passa um ribeiro na serra da Freita para escrever. E eis o que de mais importante e maravilhoso estes meus dias antipoéticos trazem à minha existência: a poesia. Sempre foi assim, comigo. Eu esboçava as primeiras tentativas de canções, desde que me lembro, nas horas de estudo das mais aborrecidas, inenarráveis e lamentáveis matérias curriculares dos programas obrigatórios. O fluxo de sangue no coração, os fenícios e os visigodos, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos, dois pi erre ao quadrado, solos e subsolos, o Preste João. A maneira como as coisas eram apresentadas de uma forma muito literal, muito pouco literária, herbicidas da flora criativa de uma mente imberbe, sempre serviu para avivar o gatilho através do qual o meu espírito arranjava maneiras de se livrar. Escrevia uma música e deitava fora por vergonha. Mas hoje sei que só escrevia porque estava, naquele momento, sob o jugo da obrigação de ter de me entregar a essas aborrecidas matérias. Hoje não tenho isso. Mas tenho gravações em estúdio, testes de som, viagens, entrevistas, esperas, idas a treinos de futebol de infantis, e esse gatilho ainda se mantém ativo. É nessas alturas que as ideias me assomam à mente. Não é em retiros, residências artísticas (sei, porque já fiz isso tudo), madrugadas sob as estrelas em moinhos abandonados junto aos quais passa um idílico regato. É com a pequenez das minhas rotinas que posso sempre contar para que as ideias fertilizem. Caso contrário, junto ao calor improvisado de uns toros húmidos acabados de sachar numa salamandra de cobre dentro dum moinho abandonado junto ao qual passa um regato, imediatamente se haveria de instalar um modo “tudo-a-postos” de onde nem uma sílaba me haveria de ocorrer. Os meus dias são compridos, rasteiros, pequenos, iguais. Se os meus dias fossem grandes, poéticos, oníricos, então a minha poesia jamais seria.
(Crónica publicada na VISÃO 1406 de 13 de fevereiro)