Das matérias sobre as quais é necessário legislar, as dos direitos correspondentes aos chamados avanços civilizacionais são provavelmente as mais difíceis. A mentalidade das sociedades não progride ao mesmo tempo nem muda por decreto, e por isso é tão complicado colocar opções em letra de lei. A eutanásia é um destes casos.
O tema combina tudo para ser fraturante: matéria de vida ou morte, conflitos de interesses e de direitos fundamentais e enormes preconceitos religiosos enraizados na nossa cultura. À medida que, por um lado, as sociedades se dessecularizam e, por outro, a medicina e a ciência avançam e prolongam a vida, acredito que, daqui a algumas décadas, a eutanásia será tão inquestionável como é hoje a inexistência da pena de morte, os direitos iguais para as mulheres, a despenalização do aborto e o casamento homossexual.
Em grande parte do século XX, o aborto era proibido na enorme maioria dos países europeus, feito pecado pela Igreja e malvisto pelos bons costumes. Mas mulheres praticavam-no, ainda assim, às escondidas, condenadas a soluções ilegais que punham em risco as suas vidas. Para as mais abastadas, a solução era praticar uma espécie de turismo abortivo – iam a Londres ou à Holanda desmanchar gravidezes indesejadas. Depois de um longo processo que implicou dois referendos e muitas propostas de lei, o aborto foi finalmente despenalizado em Portugal. Não aumentaram os abortos massivamente nem se “mataram os Zezinhos” aos montes, como na altura os movimentos pró-vida apregoavam. Deu-se, simplesmente, às mulheres a liberdade de optarem terminar uma gravidez até um determinado estágio de evolução, e o mesmo acesso a este recurso por parte de pessoas ricas e pobres. Pelo caminho, reforçou-se a Educação Sexual e o acesso aos meios contracetivos.
Com a eutanásia passa-se hoje o mesmo. É fundamental pensá-la sem entrar em matérias de fé. É evidente que é necessário desincentivá-la e reforçar o acesso aos cuidados paliativos, que são hoje uma miragem na maioria do Portugal real. E é evidente que tem de ser bem balizada – deve ser um absolutamente lúcido desejo de doentes em estado terminal e em grande sofrimento, com todas as capacidades mentais para tomarem esta decisão.
Mas esta é uma questão de liberdade – a de viver e morrer com a dignidade que cada um entende ideal para si – e sim, a morte faz parte da vida. É uma questão de igualdade de acesso para todos a uma opção que neste momento é só praticável por alguns – os que têm condições e recursos para ir lá fora fazê-la. E é uma questão de compaixão pelo sofrimento e pela dor alheia, sem impormos aos outros as nossas certezas e convicções pessoais. Ninguém pode incentivar outrem a decidir pôr fim à vida com a morte à porta, mas dar a todos a possibilidade de querer isso para si será, no século XXI, inevitável. Podemos não estar ainda em fase de discussão suficientemente maturada para aprovar esta legislação agora – e a confusão de conceitos e argumentos atirados para a praça pública prova-o bem. Mas creio que algures no futuro tentar travar este avanço civilizacional em prol de convicções religiosas, pessoais ou poéticas será como tentar parar o vento com as mãos.