Imaginemos o filme ao contrário: o que teria acontecido de diferente, neste país, se Moussa Marega, no domingo, não tivesse abandonado o relvado do Estádio de Guimarães? A resposta é assustadoramente simples: nada! Teria sido apenas mais um “dia normal” de futebol. Os repetidos insultos racistas emitidos das bancadas teriam ocorrido na mesma, claro, mas seriam ignorados ou apenas referidos de forma fugaz, de modo a não nos fazer desfocar de “coisas importantes” como as discussões intermináveis sobre os golos e as táticas, os foras de jogo de cinco centímetros e as declarações enigmáticas dos treinadores, a que se juntariam, depois, os tweets dos dirigentes de segundo plano e dos diretores de comunicação dos clubes.
Graças a Moussa Marega, este domingo não foi um “dia normal” de futebol. Num ato isolado de coragem e de amor-próprio, num “jogo grande”, ele decidiu não tolerar mais aquilo que, há muito, já devia ser considerado intolerável, em especial no país que idolatrou Eusébio e que, ainda há pouco tempo, se uniu para gritar o golo de Éder na final do Euro 2016: os insultos discriminatórios, baseados na cor da pele. Ao abandonar o relvado, Marega fez mais pela denúncia do racismo em Portugal do que milhentas campanhas de sensibilização ou de apelo ao fair play. Com o seu gesto isolado, ele obrigou-nos a prestar atenção e a escutar, de facto, o som dos insultos – aqueles que ouvíamos há muito sem verdadeiramente… ouvir.
A explicação para esta surdez, de que sofremos coletivamente até ao ato de Marega nos abrir os ouvidos e despertar as consciências, encontra-se num fenómeno chamado banalização do insulto e do discurso de ódio. Todos sabemos o que é, pois há já demasiado tempo que nos habituámos a aceitar que, quando se discute futebol, o normal é fazê-lo com gritos e ameaças, com fanatismo e visões enviesadas. E cada vez mais crispação. A paixão pelos clubes tornou-se demasiadas vezes doentia, e não culpemos somente as claques por isso, nem os dirigentes que lhes permitem todos os desvarios. Muitos dos programas que passaram a encher as noites dos canais de notícias na televisão contribuíram para essa normalização da clubite exacerbada, cega e tantas vezes a ultrapassar os limites da má-criação e a instigar ódios latentes. De que adianta fazer entrar os jogadores em campo com tarjas a apelar ao fair play quando, nas televisões, cidadãos com carreiras respeitáveis nas suas profissões fazem questão de se transfigurar em energúmenos, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo? Como se pode pedir respeito quando o espectáculo permanente é o da falta de respeito?
A esta normalização do insulto – que já chegou ao ponto de ser avalizada por uma sentença do Tribunal da Relação de Lisboa que considerou que as ofensas no “mundo do futebol” pertencem a uma classe de gravidade inferior a todas as outras… – deve também acrescentar-se outra banalização: a de que “vale tudo” para ganhar – desde a batota à intimidação física do adversário.
É fácil declarar o apoio e a solidariedade a Marega. O difícil é fazer o que se impõe ser feito para evitar que estes gestos precisem de ser repetidos para voltarem a abrir-nos os ouvidos. Não há soluções milagrosas, como se tem visto por esse mundo fora. Mas há passos que podem ser dados. A começar, logo, nos clubes de futebol, instituições de utilidade pública que têm o dever de dar o exemplo e, no mínimo, atuar como já fazem alguns em Inglaterra: a castigar e a suspender os seus adeptos violentos, mesmo antes de a Justiça atuar. Em defesa do bom-nome da sua instituição. O imperioso mesmo é trabalhar para que os atos indignos nos estádios passem a ter a censura social que merecem. Neste momento, há já cerca de uma centena de pessoas impedidas de ir ao futebol, graças à nova lei contra a violência no desporto. Mas a imagem que fica é a de que a impunidade continua a ser a norma. Talvez, por isso, não fosse má ideia passar a tratar esses prevaricadores – alguns deles com motivações racistas – como se faz com os devedores ao Fisco e à Segurança Social: com os seus nomes numa lista pública. Assim, ninguém ficará escondido no meio da multidão.