Quem disse que o sentimento de pertença a um local era impróprio nos dias de hoje? É esta a pergunta que trago comigo sempre que regresso à ilha e recebo mimos da família e amizade de outros ilhéus. A minha geração, mas sobretudo a das minhas filhas, debatem-se com uma clivagem que divide a nossa sociedade em dois grupos distintos: os afortunados que receberam educação nas universidades e os menos felizes que, por razões várias, não puderam ou quiseram receber a mesma educação. No primeiro grupo estão os intelectuais, com formação especializada, os que ocupam os postos de trabalho bem remunerados. No segundo estão os supostamente ignorantes, a mão-de-obra pouco qualificada, os que auferem salários baixos ou estão simplesmente desempregados. Ambos os grupos se encaram com desconfiança.
No primeiro caso, estamos perante a elite, que obviamente foi ao longo das últimas décadas capturando o poder político. Este grupo surge para responder às exigências de uma sociedade cada vez mais complexa. Caracteriza-se pela valorização da alta educação que tem e pela valorização do trabalho que executa, pois são estes dois pilares que lhe permitem ter uma recompensa tanto a nível de estima como a nível financeiro. São normalmente árduos trabalhadores, muitos até “workaholics”, que fazem valer os seus interesses e valores junto do poder político, que por sua vez obriga as sociedades a acatar normas que lhes sejam favoráveis.
Este grupo, separado dos restantes membros da sociedade, defende uma espécie de individualismo libertário. Qualquer coisa como uma doutrina em que o homem e a mulher podem e devem agir livremente, compreenda-se sem os grilhões do Estado, por forma a produzir o máximo possível e a criar riqueza. Depois, esta riqueza, dizem eles alegre e romanticamente, extravasará para as classes menos favorecidas. Pura miopia. Embora a riqueza tenha aumentado, o fosso entre ricos e pobres agravou-se nos últimos 50 anos. Eles partilham com os seus pares a ideia que eles são os motores na criação de riqueza, pois são os mais aptos e capazes e, por isso, devem receber a maior fatia do bolo. Do alto do seu pedestal, presunçosos, olham com desprezo aqueles que estão no segundo grupo.
Muita coisa está mal debaixo do sol só pelo que é exposto nos parágrafos anteriores. Acrescente-se mais um dado – o fosso que divide a sociedade, as elites e os outros, é de proporções bíblicas. A elite, os privilegiados, e os seus reféns, os políticos, dissociaram-se completamente de uma parte considerável
da comunidade, o segundo grupo, que se sente esquecido, discriminado e humilhado. Daqui resulta o seu descrédito no poder político, o que obviamente ameaça a própria democracia. Acossados, sem respostas dos seus governantes, os membros deste grupo procuram soluções nos partidos de extrema direita, populistas ou nacionalistas. Adormecidos durante décadas, estas estruturas partidárias, sempre latentes, cavalgam a oportunidade e são recompensados com a entrada no estrelato da política em muitos países através do sufrágio dos muitos descontentes.
Neste segundo grupo, os que não acompanharam os tempos, dirão alguns, os que ficaram para trás, presos a um passado que morreu, porque o mundo mudou, está uma parte considerável da sociedade. São um grupo que assiste impotente à morte da social-democracia que lhes garantia um Estado providencial, de assistência, marcado pela busca de equidade e lealdade. Um grupo que assiste impotente à morte de um Estado cujo propósito era providenciar trabalho para todos. Assiste à morte de um Estado cujo valor máximo era defender o bem-estar da comunidade. O que valoriza este grupo de preteridos da grande clivagem social? Valoriza, claro está, o Estado, ou seja, o país que ajudou a construir e que vê morrer paulatinamente sem que possa fazer nada para o evitar, pois perdeu a voz. Valoriza o que conhece melhor, o país, o lugar onde nascemos.
Contrariamente, as elites não valorizam o País, antes pelo contrário, envergonham-se da sua origem e consideram-se cidadãos do mundo. Na sua viagem libertária e individual, de selfies e sucessos conquistados por mérito próprio e com muitas horas de trabalho, não cabe ninguém a não ser eles próprios. Não cabe o outro nem a nível de preocupação para com ele, nem a nível de socialização, nem a nível nenhum. Para quê? O trabalho basta-lhes para terem reconhecimento, poder e dinheiro. Vivem isolados nas suas bolhas de cristal, normalmente em famílias nucleares, consumidos pelo trabalho e pela educação superior que pretendem para os próprios filhos, sem tempo para nada, deixando de parte os pais que vão desaparecendo em asilos e a própria comunidade que se vai desmembrando devido ao seu alheamento e ao consequente alheamento dos políticos no que respeita a necessidades, a preocupações e a valores comuns. A sociedade e a família vão-se desmoronando, restando firme apenas um dos pilares de coesão social – a empresa. Esta, o local de trabalho, garante aos afortunados o seu modo de vida privilegiado e alienado, por isso, é poderosamente endeusada. Repare-se no discurso político. O cerne da questão, seja ela qual for, é a empresa.
Onde vamos buscar remédio para estes problemas que nos dividem irremediavelmente e para o perigo que eles comportam? Onde podemos encontrar a cola que nos una a todos numa comunidade que aja em conjunto para o bem comum? A solução não está, como temos assistido, em abraçar o nacionalismo, como tem feito o grupo dos excluídos e ressentidos, porque o nacionalismo teve consequências terríveis ao longo da História. Basta lembrar o partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães e o seu líder, Hitler. O nacionalismo pressupõe o amor pelo país, mas, em contrapartida, requere o ódio pelos outros países. O nacionalismo acaba por ser populista, pois pretende gerir o mundo com o coração, sem a razão. Precisamos de ambos. Podemos, contudo, repescar o nosso sentido de pertença, existente no âmago do segundo grupo, através do patriotismo. Um valor comum que consolide uma identidade e agregue o tecido social. O patriotismo pressupõe o amor pela nação mas também pelos outros países, numa relação de respeito mútuo e obrigações compartilhadas. Precisamos urgentemente do sentimento de pertença, seja a uma família, a uma região ou a um país. Pertença que nos mova como um grupo único, de compromissos e obrigações, que desfaça as clivagens existentes no mundo de hoje. Mas claro, há sempre a outra hipótese – continuarmos a ser empurrados e geridos por um grupo que, esquecido da sua essência enquanto espécie bem-sucedida à custa da cooperação, adotou a mentalidade de “rottweilers”. E que mundo nos espera então? Como será o mundo daqui a uma década se nada fizermos?