É certo que as medidas que mais diretamente estão na origem dos problemas que afetam hoje centenas de milhares de moradores das nossas cidades foram tomadas na sequência da entrada da Troika em Portugal. São dessa altura o Novo Regime de Arrendamento Urbano, os vistos gold, o Regime Excecional para a Reabilitação Urbana e as sucessivas simplificações do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana.
Mas a estratégia em que estas medidas se enquadram nasceu em Lisboa, vários anos antes, quando ainda ninguém sonhava com a Troika.
De facto, a nova equipa que toma conta da autarquia lisboeta em 2007 sabe que não dispõe dos recursos financeiros para lançar a reabilitação urbana. Por isso, ao mesmo tempo que estende a toda a cidade consolidada o conceito de Área de Reabilitação, aposta no negócio imobiliário como principal motor da reabilitação urbana. Na apresentação da Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa 2011/2024, em 29 de abril de 2011 (dias depois do pedido de assistência financeira), Manuel Salgado sublinhava os sinais animadores da retoma da atividade do setor imobiliário, em particular no centro histórico: “A mudança de objetivos por parte dos promotores privados já começou… desde o segundo semestre de 2010 os processos de licenciamento em áreas históricas (cerca de 1/5 da cidade) estão a aumentar sendo praticamente idêntico ao número de processos do resto da cidade.”
Entretanto, vão sendo tomadas, pelo governo de Sócrates, medidas que favorecem a nova estratégia: em 2009, é lançado o estatuto de Residente Não Habitual, com o nobre intuito de “atrair para Portugal profissionais não residentes qualificados em atividades de elevado valor acrescentado ou da propriedade intelectual, industrial ou know-how”. No entanto, em vez disso, mostra servir para atrair sobretudo reformados com grande poder de compra, interessados nos benefícios fiscais.
Após a entrada da Troika a abertura ao negócio imobiliário ganha novo ímpeto. Em 2013 começa a funcionar na câmara uma “via rápida” para o licenciamento, e, a partir de 2015, são postas em prática, medidas de natureza fiscal que beneficiam os fundos de investimento imobiliário.
Os resultados não tardaram a aparecer. O número de contratos de compra e venda de prédios urbanos em todo o país, passou de 150 000 em 2014 para 230 000 em 2017, um aumento de 52,6%. Mas o valor das transações de imóveis mais do que duplicou em todo o país no mesmo período, passando de €11,3 mil milhões para €23 mil milhões (+103,3%).
Na cidade de Lisboa o crescimento foi ainda maior, passando o valor das transações de imóveis de €2,5 mil milhões para €6,6 mil milhões (+164,0%), com particular incidência no centro e bairros históricos. O investimento toma normalmente a forma da aquisição de imóveis usados que, depois das obras de reabilitação, são destinados à venda, ao arrendamento, ou ao Alojamento Local (AL), processo que se traduz, frequentemente, no despejo dos moradores.
Entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas em todo o país passou de 14 000 para 54 600 (um aumento de 287%). Só na cidade de Lisboa entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas passou de mil para 11 mil (um aumento de 1000%).
A particular incidência deste fenómeno nos centros e bairros históricos não tarda a originar frequentes reclamações dos moradores e uma degradação da “atmosfera” desses locais, contribuído para a sua desvalorização enquanto património cultural.
Este efeito é agravado pelo licenciamento de projetos assinados por arquitetos-estrela, dissonantes da envolvente e desenquadrados da textura urbana consolidada. Com o crescimento em volume do negócio imobiliário resultante do afluxo de novos investidores, predominantemente estrangeiros atraídos pela expetativa de bons negócios, os imóveis nos centros históricos e nas melhores zonas das cidades aumentam rapidamente de valor, quer em termos de compra quer de arrendamento. O índice de preços da habitação (IPH) registou, entre 2014 e meados de 2019, um crescimento muito superior à inflação. Efetivamente, enquanto os preços no consumidor, sem a habitação, aumentaram 3,5%, os preços da habitação cresceram, naquele período e no conjunto do país, 49,5%
A subida em flecha dos preços da habitação reflete-se na taxa de esforço, que se torna incomportável para a classe média e obriga quem é despejado a partir para as periferias, num processo particularmente penoso para os estratos sociais mais vulneráveis. Em resultado, desde os últimos censos, em 2011, até 2017 e descontando os novos residentes estrangeiros, Lisboa perdeu 63 300 moradores nacionais (12,9%) e o Porto perdeu cerca de 20 600 (9,2%),num claro processo de gentrificação.
Em Lisboa, a reabilitação em curso nas áreas históricas está a ser feita em contradição com os objetivos estratégicos apregoados pela câmara, nomeadamente, os de “promover a sustentabilidade cultural e social”, e de “garantir a proteção e promover a valorização do património cultural.”
Com o negócio imobiliário e o turismo em “rédea solta”, a Secretaria de Estado da Habitação e câmaras como a de Lisboa têm vindo a apresentar medidas destinadas a mitigar os efeitos nefastos. Trata-se, no primeiro caso, do Programa de Arrendamento Acessível (PAA) e, no segundo caso, do Programa Lisboa Renda Acessível (PLRA).
O primeiro, que entrou em vigor no dia 1 de julho, consiste num contrato que confere ao senhorio benefícios fiscais e ao inquilino uma renda cerca de 20% mais baixa que a do mercado. Progride ao ritmo de 20 ou 30 contratos por mês e constata-se uma grande desproporção entre senhorios interessados e potenciais inquilinos. A própria secretária de estado admite que o programa vai levar tempo a chegar ao regime de cruzeiro. O segundo consiste na reabilitação de edifícios devolutos ou na construção de raiz em terrenos disponibilizados pelo município. Embora lançado em 2017, as primeiras habitações só estarão disponíveis em 2021 e não são mais que centena e meia.
A comparação destes números com as muitas dezenas de milhares de moradores que tiveram de sair de Lisboa, do Porto e doutras cidades, faz com que estas medidas saibam a “muito pouco, muito tarde”, tanto mais que a onda avassaladora do imobiliário e do turismo não dá mostras de perder força e os sinais dados pelo governo e pela autarquia são ambíguos.
Assim, já em 2019, a publicação do regime das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI) vem contribuir para um apport adicional de capital ao setor, quer através da criação e início de atividade de sociedades deste tipo, que irão adquirir imóveis para arrendamento a preços de mercado, quer através duma maior facilidade de acesso de pequenos investidores a este tipo de aplicação. Também já em 2019 Fernando Medina empenha-se pessoalmente na aceleração do licenciamento das obras, com a criação duma equipa extraordinária para eliminar a acumulação de processos, apontada pelos promotores como um entrave ao investimento.
Ao mesmo tempo, administração central e autarquia continuam a apoiar sucessivas “cimeiras do imobiliário”, para as quais é convocada, ano após ano, a global investment community, ou seja, os fundos soberanos, gestores de fortunas, simples especuladores, ou organizações à espreita de oportunidades de branqueamento de capitais, que são os verdadeiros ganhadores.
Qualquer destas iniciativas contribui para que mais capital seja aplicado no imobiliário português, agravando os impactos negativos sobre os cidadãos nacionais e sobre o património natural e cultural do país.