1 – Há, sejamos sérios, diferenças relevantes entre os casos Luanda Leaks e Football Leaks. Desde logo, a dimensão do que está em jogo. Depois, a certeza de que, no caso Football Leaks, a informação foi obtida através de um hack ilegal e terá servido para uma tentativa de extorsão (no Luanda Leaks não é ainda clara a origem da informação, na altura em que escrevo esta crónica).
Isto dito, custa a perceber o contraste entre o rasgar de vestes e a comoção causada pelo escândalo envolvendo Isabel dos Santos e o relativo desinteresse que as revelações relativas ao mundo opaco do futebol parecem suscitar. Não tenho, como é óbvio que não posso ter, uma explicação cabal para tamanho desequilíbrio. Mas consigo detetar uma coincidência. Vamos então por partes.
Isabel dos Santos não caiu em desgraça por causa da notável investigação de um consórcio de jornalistas representado em Portugal pelo Expresso. Isabel dos Santos estava já apeada do poder. Há muito que já não beneficiava do manto protetor das autoridades angolanas. Escrutiná-la, investigá-la, acusá-la e deixá-la agora, depois de cair do seu pedestal, será justo, será até uma retribuição higiénica, mas está longe de ser um ato de coragem. Lamento, mas coragem tiveram os poucos que levantaram a voz durante os anos do consulado de Eduardo dos Santos (e não esqueço que o Expresso foi, desse ponto de vista, um caso exemplar). Não foi, infelizmente, o caso da esmagadora maioria dos empresários, gestores, procuradores, reguladores, jornalistas. Não foi o caso da maioria de nós. E a súbita febre de demissões, investigações, ruturas não vai obviamente fazer essa história andar para trás.
Pelo contrário, os dignitários ameaçados pelas revelações do Football Leaks estão todos de viçosa saúde. Eu, pelos menos, não dei por qualquer erosão do poder dos grandes dirigentes, federações, clubes, ligas e agentes que dominam o mundo do futebol. Se alguma coisa aconteceu foi um aumento do poder dos grandes senhores da bola, nos últimos anos. A indústria movimenta os milhões do costume e os negócios sucedem-se a um ritmo cada vez mais vertiginoso. Não há sinais de brechas. Será a explicação pelo nosso desinteresse coletivo pelo mundo opaco da bola tão simples como esta coincidência sugere?
Não sei, reitero. E reconheço que a simples existência de poder não se traduz necessariamente, e ao contrário do adágio, na sua corrupção. Mas sei duas coisas. A primeira é que, por princípio, não gosto – é a minha costela liberal – de poderes pouco escrutinados. A segunda é que esta correlação inversa entre o poder e a nossa vontade coletiva de o escrutinar é um paradoxo. O escrutínio dos que caíram não é verdadeiro escrutínio. É autópsia. Escrutinar é, por definição e pelo contrário, enfrentar, incomodar, desafiar, os poderes que, a cada momento, verdadeiramente o são.
2 – Lamento, mas não embarco no delírio de todos os que veem subitamente nascido em Angola um Estado de Direito e um poder judicial radicalmente independente do poder político. Darei o braço a torcer no dia em que a Justiça não parar à porta dos poderes que transitaram para o novo regime. Até lá, não vejo grande diferença entre as purgas chinesas que o sr. Xi pôs em marcha a pretexto da corrupção e o processo revolucionário em curso em Angola.
(Opinião publicada na VISÃO 1404 de 30 de janeiro)