Está de novo na ordem do dia a questão da eutanásia. O tema volta ao Parlamento no dia 20 de fevereiro, para que se tome uma decisão sobre a despenalização da antecipação da morte a pedido do doente, e em situações irreversíveis de grande e persistente sofrimento.
A sociedade portuguesa divide-se sobre esta matéria: de um lado os grupos mais conservadores, com forte influência religiosa, que defendem a vida tal como a Natureza a cria e a desenvolve; por outro lado, os grupos mais evoluídos (atrevo-me a dizer mais esclarecidos e mais livres) que ponderam a vida e a morte como a evolução natural do ser humano e vêm na antecipação desta, em situações excecionais, um fim para o sofrimento atroz e insuportável, para cada pessoa que tome essa opção. Os primeiros tomam a Vida como um privilégio divino e a morte como um destino também marcado por Deus, que em nenhuma circunstância deve ser perturbado no seu tempo, no seu momento e na sua transcendência indecifrável. Não deixa de ser curiosa a posição do PCP, partido conhecido por ser conservador nos costumes e que atribui habitualmente mais importância ao coletivo do que ao individuo. Não apoiar a prática excecional da eutanásia não foi, portanto, uma verdadeira surpresa.
Os segundos – os mais esclarecidos e livres – encaram a vida como um valor relativo às circunstâncias em que nascemos e vivemos, em que os sucessos, as alegrias, a saúde e a vitalidade, se entrecruzam com a incapacidade, a miséria, a indignidade, o sofrimento e a catástrofe. Viver é um direito consignado na nossa Constituição, mas não é uma obrigação. O fim da Vida pode trazer-nos, à medida que a ciência nos dá mais anos, grandes dissabores e sofrimento: perdemos paulatinamente faculdades várias, somos atingidos por doenças crónicas, de evolução prolongada ou catastróficas, que nos limitam nos nossos movimentos, nos nossos hábitos, desejos e prazeres e podem desembocar, às vezes de forma súbita, em situações de incapacidade severa, perda total ou parcial de autonomia para as simples atividade da vida diária e grande sofrimento físico e psíquico. O conceito de Vida não se circunscreve, assim, ao conceito material que a biologia atribui aos seres vivos. O seu valor não é absoluto ou infinito para cada um de nós. Daí que, em certas circunstâncias, a morte (a nossa morte) possa ser encarada como uma alternativa melhor ou menos má do que a Vida que temos. É preciso muita coragem para trocar a vida sem valor pela pura e simples inexistência: aqui, perdemos sempre a consciência de continuar cá, ao pé dos nossos, convivendo com os nossos hábitos, as nossas convicções, as nossas coisas e com as pessoas a quem nos afeiçoamos e a quem amamos. Partimos, segundo alguns, para um desconhecido misterioso em que a Vida continua, em penitência ou em alegria. Para outros, deixar de viver significa mesmo o fim da Vida, no sentido absoluto. Deixamos de existir e passamos a pó.
Pedir para nos ajudarem a morrer, em circunstâncias de grande desespero e sofrimento e sem solução à vista (eventualmente um milagre para quem acredita neles) é, assim, uma opção que me parece legítima e que deveremos respeitar. É do foro íntimo de cada doente, tomada em plena liberdade e consciência, e segundo critérios de admissibilidade bem definidos e verificáveis por peritos da área médica. Isso mesmo está previsto nos projetos-lei dos partidos políticos que até agora os apresentaram – Verdes, PAN,PS e BE. Em todos eles, há uma exposição de motivos que revela genuína e séria reflexão sobre o problema, associando-se, nalguns casos, os contributos de constitucionalistas e peritos das áreas da medicina e da ética. Haverá aspetos técnicos que merecem melhor clarificação e aperfeiçoamento, mas não parece difícil obter-se um documento comum que consensualize todas as iniciativas sobre a matéria.
Pelo contrário, os argumentos das bancadas que rejeitam a despenalização da morte assistida em situações excecionais e controladas, baseiam-se na defesa abstrata da Vida, insensíveis às situações excecionais e utilizando manobras de diversão, como sejam o incremento dos cuidados paliativos (como se estes resolvessem ou atenuassem o sofrimento e a manifesta incapacidade de autonomia) ou a ideia de “rampa deslizante” que iria conduzir a prazo à morte antecipada de todos os idosos, por perda de utilidade social ou como forma de poupar nas reformas. Estes argumentos, baseados numa moral serôdia, no alarme social ou em puros processos de intenção sem consistência, retiram credibilidade aos seus autores. Os mesmos que agora, associados a vários credos religiosos, vêm solicitar um referendo nacional sobre a matéria. Uma última e dilatória esperança, não de acrescentar valor à discussão, mas a de ver chumbada a Eutanásia. E como classificar a mensagem dos que dizem que isto é apenas um jogo político em que “pega lá o orçamento e dá cá a eutanásia”? É um insulto sem nome aos que genuinamente se têm dedicado ao estudo deste tema, e aos doentes que poderão vir a recorrer a esta solução em situações de profundo e comprovado sofrimento.
Importa dizer que as escolhas individuais legítimas, quando não põem em causa o interesse da coletividade ou de terceiros, não são referendáveis. Que sentido faz contabilizar opiniões contra ou favor da despenalização da morte assistida, quando não estamos a falar de uma norma ou de uma obrigação que abarque todos os cidadãos? O que importa, e apenas isso, é que se permita, excecionalmete, a pessoas incluídas nas situações clínicas previstas, e que assim reiterada e conscientemente o desejem, contarem com o apoio de profissionais de saúde para terem uma morte digna, que interrompa um sofrimento insuportável. O Estado não deve ter sobre esta matéria, tão sensível e pessoal, um padrão único de comportamento, que obrigue ao sofrimento sem tempo limite e sem soluções clínicas. Abrir esta possibilidade é uma questão de humanidade. Obrigar doentes terminais a um sofrimento atroz, sem perspetivas de reversibilidade, é uma defesa da Vida, absurda, cruel e apenas enquadrável numa filosofia de expiação dos nossos pecados e de uma prova do nosso estoicismo, da nossa fé e do nosso esforço interior. Conceitos que se admite que muitos ou alguns partilhem mas que não têm o direito de impor a toda a coletividade. E é justamente esta diversidade de pensamento que deve ser respeitada e não impor um pensamento único sobre a Vida e a Morte.
A objeção de consciência dos médicos, dos enfermeiros e de outros profissionais de saúde, quando chamados a participar neste processo de auxílio ativo à morte assistida, deve ser respeitada, porque são profissões formadas e treinadas para lutar pela vida e, sempre que possível, pela cura dos seus doentes. Mas mesmo aqui, a evolução da relação médico-doente, ao pôr cada vez mais a enfase numa decisão clinica partilhada, com o consentimento informado do doente, e ultrapassando a relação paternalista de antigamente, abre cada vez mais espaço para a interrupção ou omissão de tratamentos ou intervenções classificadas como encarniçamento terapêutico. E o testamento vital, já em vigor em Portugal, trava a aplicação de tratamentos ativos em situações de fim de vida, por opção do doente. A eutanásia insere-se nesta estratégia de valorização da sua vontade, observados limites bem definidos, neste caso antecipando a morte com dignidade quando o conhecimento cientifico não tem soluções para a degradação física e psíquica e para travar o sofrimento e a morte.
Uma última nota para os locais de aplicação da Lei nestes casos: a casa do doente, uma instituição hospitalar ou outro local considerado aceitável pelas autoridades de verificação.
Apenas “Os Verdes” excluem deste processo as instituições privadas, com o receio de que estas práticas de exceção alimentem o interesse económico de prestadores privados e aumentem ou incitem opções de antecipação da morte. É uma questão que deve ser bem ponderada pelo legislador, pese embora todo o processo previsto até à consumação do óbito esteja devidamente delimitado e controlado em todas as propostas.