Há uns tempos foi-me relatado, por fonte impolutamente fiável, o diálogo seguinte entre uma criança e uma pessoa ajuizada. Logo na primeira fala, não será difícil adivinhar quem é quem.
— Compras-me gomas?
— Não.
— E pipocas?
— Não.
— Então e moedas de chocolate?
— Também não.
— Se fosses uma criança e se eu fosse um adulto, se pedisses estas coisas e se eu dissesse que não, gostavas?!
Esta criança é esperta, admito-o, mas não me faria mudar de ideias. Apelou à Regra de Ouro. Só que a sua pergunta, em vez de refletir uma versão respeitável deste princípio, corresponde a uma regra de pirite — esse metal pouco nobre que, por ser dourado, se presta a logros e assim se tornou conhecido por “ouro dos tolos”.
A Regra de Ouro está entre nós há muitos séculos. Encontramo-la, por exemplo, numa história talmúdica que começa quando um sujeito irritante desafia um rabi a explicar-lhe toda a Tora, prometendo-lhe converter-se se conseguir fazê-lo enquanto ele, o sujeito, se aguentar de pé numa só perna. Compreensivelmente, o rabi enxota-o. O Rabi Hillel foi mais paciente. Confrontado com o mesmo desafio, respondeu: “Não faças a outrem aquilo que te é odioso; isto é a Tora inteira e o resto é interpretação.”
De uma forma ou de outra, a Regra de Ouro está presente não só no judaísmo, mas em todas as religiões abraâmicas, e não só nestas, mas também em várias religiões orientais e no pensamento secular. O filósofo Harry Gensler, provavelmente o maior entusiasta da Regra de Ouro, oferece-nos aqui uma cronologia bem interessante deste princípio. Quem participe no seu entusiasmo poderá até encomendar uma das suas t-shirts.
Estando a Regra de Ouro tão profundamente embutida no pensamento moral da humanidade, não deixa de ser surpreendente que, na ética filosófica, esta tenha um lugar marginal. Chega mesmo a ser repudiada como se não passasse de uma tolice infantil, sendo Kant o seu detrator mais influente. A que se deve este repúdio? Sobretudo ao facto de, nas suas versões mais simples, a Regra de Ouro conduzir a conclusões bem disparatadas, se tomada à letra. Parece implicar que o juiz não deve condenar o homicida, visto que ele próprio não gostaria de ir preso. Ou que o masoquista deverá infligir-nos dor, dado que ele próprio tem uma predileção por sensações dolorosas.
Como evitar estes veredictos? Eis uma das versões da Regra de Ouro que Gensler nos propõe: se somos consistentes e pensamos que nada haveria de errado em fazer A a X, então admitimos que alguém nos fizesse A em circunstâncias similares.
Para aplicar bem este princípio, há que atender a duas subtilezas. Uma delas é não esquecer a qualificação “em circunstâncias similares”. O juiz deverá imaginar-se numa situação similar à do homicida, isto é, numa situação hipotética na qual ele próprio cometeu um homicídio. E depois? — poder-se-á dizer. — Se ele tivesse cometido um homicídio, não gostaria de ser preso por isso. Isto leva-nos à segunda subtileza: aquilo que importa não é a atitude que o juiz teria caso se visse julgado por homicídio, mas a atitude que ele tem (aqui e agora) a respeito desse caso hipotético. Pois bem: o juiz pode perfeitamente admitir (aqui e agora) que o condenassem a uma pesada pena de prisão, se ele próprio cometesse um homicídio. Assim sendo, ele pode, sem nenhuma inconsistência, considerar moralmente aceitável dar esse destino ao homicida.
A falácia da criança que queria guloseimas está agora à vista. Mesmo que seja verdade que o adulto, se fosse ainda uma criança, desejaria estar livre de restrições ao consumo de comida açucarada, isso é totalmente irrelevante. Gostaria o adulto (aqui e agora) que os adultos incumbidos de cuidar dele o deixassem estragar a saúde com guloseimas, caso ele fosse uma criança? Se for sensato, não. E, por isso, ele não deverá ceder às pressões da criança que julga já compreender a Regra de Ouro. Se ceder, aliás, poderá estar a violar este mesmo princípio.
Mas o que dizer do masoquista? Seja X uma pessoa com uma aversão normal à dor. Para ele se pôr adequadamente no lugar de X, e assim considerar circunstâncias similares, terá de se conceber não como masoquista, mas como alguém que, como X, se caracteriza por não gostar de sensações dolorosas. Ora, é de esperar que o masoquista não admita que lhe infligissem essas sensações numa situação em que ele, como X, fosse avesso à dor. E assim, à luz da Regra de Ouro, ele incorrerá numa inconsistência se julgar que não é errado infligir dor a X.
Repare-se que, para Gensler, a Regra de Ouro é apenas uma exigência de consistência. É um princípio que nos diz para “não combinarmos” certas atitudes. Mais precisamente, diz-nos que cairá numa inconsistência quem combine as atitudes “Penso que nada haveria de errado em fazer A a X (em certas circunstâncias)” e “Não admito que alguém me fizesse A (em circunstâncias similares)”. Para evitar a inconsistência, não há um caminho que se imponha. Quem nela se veja enredado poderá deixar de pensar que nada haveria de errado em fazer A a X. Mas, em vez disso, poderá passar a admitir que lhe fizessem A. Raciocinando segundo a Regra de Ouro como Gensler a entende, pessoas diferentes podem seguir caminhos diferentes e, assim, divergir nas suas opiniões morais.
No seu último livro, o filósofo Derek Parfit defendeu uma versão mais ambiciosa da Regra de Ouro. É esta: devemos tratar todos como quereríamos racionalmente ser tratados se ficássemos na posição desses indivíduos, e fôssemos como eles nos aspetos relevantes (isto é, se estivéssemos em circunstâncias similares àquelas em que eles estão). Aqui “todos” inclui todos aqueles que serão afetados pela nossa escolha, incluindo nós mesmos no futuro. Por exemplo, o adolescente que começou a fumar será convidado a imaginar-se com cancro do pulmão aos sessenta anos, digamos, e a perguntar-se se gostaria que um adolescente o deixasse viciado numa substância que o pôs letalmente doente.
Ao invés de Gensler, Parfit não entende a Regra de Ouro como uma simples exigência de consistência. E a sua versão do princípio, note-se, refere-se ao que queríamos racionalmente. Para o aplicarmos bem, portanto, temos de perceber no que consiste ao certo a racionalidade de preferências. O próprio Parfit dedica uma boa parte do seu livro a este assunto complexo.
Será que a Regra de Ouro, assim entendida, poderá revelar-se não só um princípio moral entre outros, mas o princípio supremo da moralidade? (Tudo o resto seria “interpretação”, como disse o Rabi Hillel.) Será que, aplicando-o propriamente, todos os agentes racionais chegariam aos mesmos veredictos, do que resultaria a objetividade da ética? Estas são questões que Parfit acaba por não explorar, mas que se me afiguram objetos dignos de reflexão.