A proposta de devolver o património, alegadamente pertencente às ex-colónias portuguesas, retido em Portugal, é uma ideia que merece discussão. Embora o tema tivesse sido injetado artificialmente pela deputada – agora não inscrita… – Joacine Katar Moreira, era inevitável que essa discussão, mais tarde ou mais cedo, viesse a aterrar na agenda política nacional. Katar Moreira, aliás, agradece a retirada de confiança do Livre, partido que lhe terá apenas servido de barriga de aluguer para ganhar a visibilidade necessária para a formação de um partido de nicho, defensor das minorias étnicas, talvez em sociedade com Mamadou Ba, que, entretanto, abandonou o Bloco de Esquerda. Tudo isto é política, tudo isto é legítimo – e, se calhar, tudo isto é saudável e necessário.
Relativamente à matéria de facto, convém que sejamos racionais. No meio da polémica toda, ninguém se interrogou se esse património existe mesmo, no sentido em que existe o património invocado, a propósito, noutros exemplos, como o do British Museum. Será que Joacine quer devolver os biombos Namban ao Japão – onde, aliás, nunca houve “colónias” portuguesas, no sentido da ocupação administrativa? Ou serão as peças de mobiliário indo-português, distribuídas por vários palácios, exposições ou museus, para além de coleções particulares, que terão se ser devolvidas a Goa? Relativamente ao património oriundo de África, o que teremos em Portugal? Será tudo arte ou, na maior parte, artesanato? São peças saqueadas, ou foram adquiridas de forma transparente? Onde está esse material? Joacine será capaz de identificar, assim de cor, alguma “Mona Lisa” guineense que tenha sido saqueada e que urge devolver a um hipotético Louvre de Bissau? Se sim, que condições terá aquele, ou outro país, eventualmente interessado em recuperar as peças, para que tal património continue a ser preservado e a estar acessível ao público? Não seria melhor oferecer, ao mesmo tempo, a assistência técnica de Portugal para ajudar as autoridades de alguns desses países a zelarem por tal património ou mesmo a fazerem a sua divulgação?
Não fazem sentido quaisquer comparações com o debate que é feito lá fora – por exemplo, em torno da devolução de peças do Bristish Museum, a vários países – ou relativamente ao património confiscado durante as invasões napoleónicas, ou com os saques nazis da ocupação, por Hitler, de vários países, durante a II Guerra Mundial. Esse património, em primeiro lugar, tem sido reclamado pelos países de origem, que foram invadidos num contexto bélico, que possuíam património edificado, armazenado ou exposto, e que foram simplesmente roubados. Ao contrário do colonialismo, a ocupação nazi foi considerada ilegítima no seu próprio tempo. E o que os nazis perpetraram foram crimes de guerra – e, por isso, foram julgados. No Egito, a Inglaterra, a França e outros países arrancaram pedras, estátuas, obeliscos e túmulos para os trazer para a Europa. Violaram território, espoliaram património, saquearam instalações.
Nenhuma destas condições parece verificar-se, relativamente ao alegado património africano guardado em Portugal. Ou antes, caso se verifique, os casos devem ser devidamente catalogados por peritos. Não consta que Diogo Cão, no século XV, ao chegar à foz do Zaire, tivesse encontrado monumentos, museus ou templos, e os tivesse saqueado. E não consta que os países africanos de expressão oficial portuguesa, descontando, apenas, uma declaração de princípios angolana, tenham vindo, agora, reclamar o seu património roubado. Em nenhuma parte da Europa a devolução de património a países que tenham sido ocupados, colonizados ou invadidos foi uma iniciativa unilateral do ex-agressor. Pelo contrário, o debate surgiu sempre por iniciativa dos que se sentiram expoliados. Portanto, o facto de haver uma deputada, em Portugal, que, do nada, se propõe devolver sabe-se lá que peças à sua proveniência, sem que os principais interessados tenham manifestado qualquer vontade, é, numa interpretação benigna, o escuteiro a obrigar a velhinha a atravessar a rua à força.
Tive um professor que, certo dia, perguntou, de chofre, aos seus alunos: “Porque é que fomos nós a colonizar África e não os africanos a colonizar-nos a nós?” E respondeu: “Porque não foram capazes.” Logo algumas vozes se ergueram contra a tirada, evidentemente racista. Mas ele tinha outra explicação, que lhe conferia, ao menos, o benefício da dúvida: “Não se trata de racismo. Isto serve para mostrar que o colonialismo em África não foi mais do que uma etapa do processo histórico global. Se A não colonizasse B, seria sempre B a colonizar A, porque o recontro entre dois mundos teria sempre, naquela época, um dominador violento. Os europeus apenas beneficiaram da lei do mais forte, coisa que hoje, para nós é inaceitável. Mas este ‘hoje’ faz toda a diferença”.
E nós perguntamos: “E então? Isto vai ficar assim? Podemos apaziguar a nossa consciência com a explicação histórica?”. A resposta deve ser “não”. Tudo o que pudermos fazer para corrigir, remediar ou compensar os abusos cometidos pelos protagonistas do nosso passado coletivo, devemos fazê-lo. E isso inclui a devolução de património de que ilegitimamente nos tenhamos apropriado. Mais, o critério deve ser mesmo o dos nossos valores atuais. Mas isso não se faz à balda, não se faz unilateralmente, e não se faz sem garantir “o superior interesse” do próprio património. Sobretudo, não se faz sem conhecimento científico de causa, ou apenas como uma proclamação.
2. Não pretendo comentar as declarações de André Ventura, a propósito do tema anterior. Chegámos a um ponto em que qualquer crítica ao líder do CHEGA lhe garante mais uns milhares de intenções de voto. Prefiro não dar para esse peditório. Ele vive da publicidade que os partidos do dito “sistema” e os órgãos de comunicação lhe fazem gratuitamente. A minha Avó dizia (os senhores do PAN que tapem os ouvidos…) que quando damos uma pancada na cabeça de um sapo, ele começa a bufar – e o seu corpo incha imediatamente, numa atitude de agressividade. E quanto mais leva, mais incha. Ora, sobre André Ventura, pretendo apenas chamar a atenção – para que o leitor se divirta comigo – para a permanente colocação de vídeos (provavelmente por si próprio), nas redes sociais, com intervenções suas, onde, invariavelmente, se escreve: “André Ventura arrasa fulano. André Ventura arrasa sicrano”. O homem está sempre a “arrasar”, ele “arrasa” tudo e todos. Este “arrasa” está a arrastar-se e vai acabar por cansar. Mas, até lá, André Ventura é um arraso. E quanto mais leva, mais incha. É como os sapos. Talvez isso explique muita coisa, se pensarmos na sua relação com a comunidade cigana.
3. Vimos muita indignação por causa das capas futebolísiticas dos jornais desportivos, no dia seguinte ao da trágica morte do basquetebolista da NBA, Kobe Bryant. E havia comparações com as fabulosas primeiras páginas da imprensa desportiva internacional, onde a sua figura era tema principal e, amiúde, tema único. Isto, alegadamente, provava o provincianismo da imprensa desportiva nacional. Ora, eu faço apenas duas perguntas: se os dias seguintes a uma vitória importante do Benfica são aqueles em que os jornais desportivos mais vendem, que opção tomaria um diretor de jornal responsável? Segunda pergunta: se a mesma tragédia tivesse acontecido a Cristiano Ronaldo – uma figura muito mais global do que Kobe Bryant, como mais uma vez ficou demonstrado, com o recorde mundial, revelado esta semana, de seguidores no instagram, 200 milhões – quantos jornais americanos teriam dedicado a primeira página ao astro português?… Nenhum. O soccer pouco dirá aos seus leitores. Então, porque hão de dedicar os desportivos portugueses a capa a um jogador de basquete americano, ainda que conhecido mundialmente? A maior parte dos que criticaram A Bola, o Record e O Jogo nunca compraram jornais desportivos. E se a capa tivesse sido o Kobe, continuariam a não comprar.
E já que hoje estamos numa de politicamente incorretos, acrescentarei que prefiro uma imprensa provinciana a uma imprensa colonizada pela cultura ianque. Talvez seja por isso que não tenho pachorra para os óscares.