A ideia, avançada pelo socialista Francisco Assis, de lançar a candidatura presidencial de Ana Gomes, apoiada pelo PS, foi pensada com a intenção de entalar António Costa e de lhe estragar os planos. O primeiro-ministro está a fazer tudo para dar um apoio, senão explícito, ao menos, “por falta de comparência”, à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa . E ainda que tivesse vontade de apoiar um candidato socialista forte, contra o atual Presidente, a escolha jamais reacairia sobre Ana Gomes. Com efeito, a ex-eurodeputada – que já deu água pela barba a José Sócrates, durante o consulado do antigo chefe de Governo – é uma crítica crónica do “sistema”. E se há figura que personifica o “sistema” (o que quer que isso seja…) é António Costa. E se há partido que medra com o “sistema” é o atual PS.
Ora, apesar da carga negativa da expressão, é bom que exista um “sistema”. O “sistema” significa estabilidade, moderação, Estado de Direito, paz social e tranquilidade pública. A perversão do sistema – e é isso que mexe com Ana Gomes – é a sua parte lunar, as negociatas feitas à sua sombra, o nepotismo, o favorecimento, o poder das corporações, a influência dos “poderosos” e, em última análise, a corrupção. Por isso é que o sistema é péssimo – mas só de pensar em possíveis alternativas, lembramo-nos logo da conceção churchilliana sobre a democracia: este “sistema” é o pior – à exceção de todos os outros. Todos os outros sistemas conhecidos tendem a substituir a estabilidade pela turbulência, a moderação pelo radicalismo, o Estado de Direito pela ditadura, a paz social pela repressão e a tranquilidade pública pela agitação. Sem que, com isso, consigam exterminar a corrupção, que passa a ser muito mais endémica e tentacular, porque prospera protegida pelo poder absoluto, sem escrutínio, imprensa livre ou poder judicial independente, o que significa menos perceção pública do fenómeno.
Uma candidatura de Ana Gomes é a pior notícia possível, pois, não para Marcelo Rebelo de Sousa, ou para António Costa mas para… André Ventura. Ana Gomes navega, em parte, nas águas que o líder do CHEGA pensava ter, para si, como um mare clausum: o combate à corrupção, a denúncia dos podres da política e dos negócios, o ataque… ao sistema. Há, reconheça-se, uma diferença decisiva entre Ana Gomes e André Ventura: a socialista teve sempre esta postura, o que lhe dá o crédito da sinceridade. André Ventura, pelo contrário, incarna o oportunismo de quem viu aqui um filão que lhe permite a notoriedade e a influência que nunca teria como obscuro autarca ou mero comentador desportivo. Ana Gomes transporta uma certa pureza, Ventura carrega uma aura de espertalhão. André Ventura saiu de um partido do tal “sistema”, onde sempre se comportou como militante exemplar. Ana Gomes continua num partido do mesmo “sistema”, mas sempre se comportou como sua consciência crítica. Ana Gomes espera um processo movido por Luís Filipe Vieira, André Ventura, que se auto promove como campeão do combate à corrupção, não só não revela qualquer curiosidade em saber, afinal, se as suspeitas que pendem sobre o presidente do seu clube têm ou não fundamento, como, pelo contrário, o representa num canal televisivo – a propósito, como seria, neste campo, um debate entre Gomes e Ventura?…
Ana Gomes seria, como candidata a Belém, a voz incómoda que a credibilidade do seu currículo avalizaria, e André Ventura seria aquilo que é, na Assembleia da República: um equivalente continental, mais polido e sofisticado, do deputado do Parlamento Regional da Madeira, José Manuel Coelho. Aliás, por coincidência, ou talvez não, também o deputado regional assumiu, em 2011, uma candidatura presidencial, obtendo uma boa recensão dos eleitores, por ter dito mais ou menos as mesmas coisas, e ter feito mais ou menos as mesmas figuras que diz e faz o boneco composto por André Ventura, no Parlamento. E isto nada tem a ver com ideologia, nem com o facto de um ser mais ou menos anarco-esquerdista e o outro se apresentar como vagamente securitário-populista…
É por isso que Ana Gomes pode prestar um grande serviço ao País, caso venha a candidatar-se. Mesmo não ganhando, pode apropriar-se, de forma séria e sincera, de algumas das bandeiras empunhadas de forma apressada e oportunista por André Ventura – basicamente, o discurso contra a corrupção – e esvaziar a mais do que certa candidatura do líder do CHEGA. Tem todas as condições para isso: discurso, notoriedade e uma popularidade transversal que mete a um canto a popularidade de nicho de André Ventura.
E O CDS?
O CDS tem este fim-de-semana o seu 28.º congresso. O desafio do próximo líder é o de assegurar a sobrevivência do partido. Com um PSD apostado em posicionar-se ao centro, dir-se-ia que a direita democrática ficaria livre das investidas do partido grande de Rui Rio. O problema é que, lendo as moções e ouvindo os candidatos centristas, todas as grandes bandeiras acabam por ser mesmo centristas, mau grado eles baterem no peito pelos valores da direita. Aliás, no atual estado da política portuguesa, todos querem ser – ou, na prática, são – partidos de centro, e até o Bloco de Esquerda reivindicou, pela voz de Catarina Martins, a defesa de valores da social-democracia. Ou seja, o CDS de 1974/75, que então estava sozinho, viu o seu campo invadido por toda a gente. Infelizmente, depois de ouvir o debate a cinco, na RTP, fiquei convencido de que o único capaz de esvaziar o CHEGA e combatê-lo no seu próprio campo – a suposta defesa dos supostos desfavorecidos do “povo simples” contra as elites de Lisboa – é o candidato mais marginal, Carlos Meira, de Viana do Castelo. Sabemos bem que, historicamente, esta ideia da alegada existência de um povo puro e virtuoso que é vítima de elites pérfidas e corruptas é perigosíssima: foi esta ideia que deu origem aos totalitarismos do século XX, com o seu séquito de guerras e violências. Foi esta ideia que alimentou o movimento dos coletes amarelos. Foi esta ideia que elegeu Donald Trump. Foi esta ideia que deu gás a todos os populismos europeus, de esquerda e de direita, do francês ao italiano, do grego ao alemão. Num tal mundo, o nobre CDS de Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Francisco Lucas Pires ou Adriano Moreira – e até de Paulo Portas – , faria todo o sentido… mas deixou de ter lugar.