Ponto prévio: o meu entusiasmo perante uma eventual pretensão presidencial de Cristina Ferreira é igual ao que sinto face a todos os propalados (re)candidatos – nenhum.
Vem isto a propósito de uma entrevista publicada esta quinta-feira, na VISÃO, em que a própria assumiu aquilo para que há algum tempo vinha apontando, isto é, que não exclui vir a fazer caminho até Belém. O que depois disso li e ouvi acerca de uma mera hipótese ainda mal calculada diz muito mais sobre quem o proferiu do que sobre a ambição da própria.
Sejamos claros. Cristina Ferreira há muito que acabou com o labéu de que vingou por ter uma carinha laroca. Há muito que superou a efemeridade que marca a carreira de tantas estrelas do pequeno ecrã. Assim como há muito demonstrou que não é uma empresária de trazer por casa. Ainda que isso incomode os espíritos mais irascíveis, a coqueluche da SIC é, acima de tudo, a personificação do sonho e a representação de carne e osso da mobilidade social.
Cristina Ferreira é a prova de que o talento, a educação e o trabalho, conjugados, podem mesmo ser uma solução para os grilhões socieconómicos. É o testemunho vivo de que a menina da Malveira pode aspirar a férias nas Maldivas. De que a pequena que vendia roupa na feira pode transformar-se na criadora e proprietária de sua própria linha. É o atestado de que até as filhas e os filhos do Portugal esquecido não estão sempre condenados às mãos calejadas, aos braços varonis, à coluna dobrada e ao respeitinho bacoco que algumas elites cultivaram durante décadas.
É esse o segredo e o pecado de Cristina Ferreira. Ser bem-sucedida, apesar das unhas de gel, da voz esganiçada, das escorregadelas linguísticas e do estilo destravado. Quem é que a mandou romper com essa lei não escrita de que a ascensão, em teoria, é muito bonita, mas na prática, bastante condenável e objeto de invejas incontidas?
Aníbal Cavaco Silva passou pelo mesmo. Era o que mais faltava que um rapaz oriundo de Boliqueime, com as suas meias brancas e forma peculiar de comer bolo-rei, ousasse ser líder do PSD, primeiro-ministro e até Presidente da República. Cristiano Ronaldo e Jorge Jesus são, todos os dias, vítimas dos estereótipos e preconceitos dos polícias da pós-modernidade. E, azar dos Távoras, vencem-nos.
O “drama”, para alguns desses ciumentos, sobretudo nas bolhas de Lisboa e do Porto, que não suportam olhar para os outros e encontrar laivos das suas origens, é que o português comum se revê em Cristina Ferreira e não quer saber do que pensam os guardiões da democracia, os tutores do regime e os juízes do bom gosto, que nunca descansam nem deixam descansar quem não lhes preste vassalagem. À mulher e ao homem médios importa mais que lá tenha chegado a pulso e não por ser filha de fulano, amiga de beltrano ou apoiante de sicrano.
É absurdo supor que Cristina Ferreira será candidata em 2021. Mas e se pretender avançar em 2026? Ou em 2031? Ou quando bem entender? Quem, além da Constituição, pode definir os pré-requisitos para que outrem se possa valer das prerrogativas que a Lei Fundamental confere a todos? Uma comissão de seleção? Um comité de sábios? Os diretórios partidários? Os críticos mais apreciados no Príncipe Real? Haja juízo.
Sem que seja preciso bajulá-la ou ceder a impulsos popularuchos, Cristina Ferreira tem de ser tratada como aquilo que é, um fenómeno popular que cruza classes e rasga convenções. Relativizar o seu peso mediático, ignorar o seu relevo social ou menorizar o seu talento e as suas conquistas tem um nome: arrogância. Depois queixem-se dos populismos…