Morreu Zé Mário. Assim, sem mais nem menos. E apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente, quando soube da notícia, senti que tinha perdido um amigo.
Quando era pequenina, a sua voz já me era familiar. Como são familiares os tios ou os amigos dos pais. Tinha certeza absoluta de que a sua música era para mim. Porque afinal, O Charlatão ou a Ronda do Soldadinho só podiam ser para crianças, aliás como A Formiga no Carreiro do (meu outro grande amigo) Zeca Afonso, ou as capas dos discos do Fausto, com aquelas ilustrações maravilhosas.
Foi quando o meu pai me explicou o que queriam dizer aquelas músicas, descodificando as suas mensagens, que percebi o poder das palavras. É que isso de servirem para dizer outras coisas, sérias e proibidas, quando aparentemente estão ali apenas para entreter, pareceu–me a coisa mais mágica e valente do mundo. Driblar a censura, com aquele código poético, para trazer esperança aos que viviam sob o jugo da ditadura e espalhar a mensagem, era coisa de herói. E foi assim que ele subiu ao Olimpo da minha mitologia de infância, para ficar para sempre.
O meu primeiro CD era dele. Gostava da sua ironia, da voz grave e do seu leve sotaque do Porto, apenas percetível aqui e ali. Um dia, fui vê-lo falar, numa conferência qualquer. Era adolescente e o que ele disse sobre a música marcou a minha profundamente. É que, se há quem ache que a arte é eminentemente estética e que a técnica é o ofício permanente do artista, a ética é sempre a dimensão fundamental. Palavra é discurso. Arte é posicionamento. Sendo impossível separar, na sua obra, as convicções e as escolhas artísticas. Quer do ponto de vista criativo quer mesmo em termos de gestão de carreira.
Fez discos e deu concertos enquanto achou que podia contribuir politicamente para a mudança do mundo. Parou quando sentiu que não tinha nada a acrescentar à voragem deste fim da história mal-enjorcado a que chamamos dois mil e tal. Fez sempre questão de dar as suas opiniões publicamente, mostrando-se muito crítico em relação à forma como os sucessivos governos do País falhavam no cumprimento das metas de Abril, perpetuando as desigualdades e favorecendo os interesses do capital. E esteve sempre do lado da música de verdade.
No dia do seu velório, decidi ir à Voz do Operário para lhe prestar homenagem. Parei no mercado da Ribeira, comprei vinte e cinco cravos vermelhos e, com o meu bebé no pano, subi a escadaria do edifício até ao salão, onde os muitos amigos e admiradores lhe prestavam homenagem. E, para minha surpresa, quase só vi cabelos grisalhos. Nunca tinha pensado nisso, mas, de facto, acho que as gerações mais jovens não conhecem bem a sua obra. Não têm noção do seu contributo. Não conseguem cantarolar um dos seus temas. Nem perceberam o alcance desta perda.
Por outro lado, pensei nas muitas pessoas da minha geração que têm feito versões das suas canções, ou que têm samplado as suas frases (poéticas ou musicais) para fazer a nova música portuguesa. Dos Linda Martini ao Ruas, de JP Simões a Batida, entre muitos outros. E lembrei–me de o ouvir dizer numa entrevista que, apesar de viver da chamada propriedade intelectual, não acreditava nesse conceito. Achava que, no momento da criação, estamos todos sintonizados numa espécie de subconsciente coletivo a que chamamos inspiração e que esse património comum vive da permanente retribuição e circulação de estímulos.
Nesta lógica, espero que a minha geração assuma a missão de mostrar o seu génio aos mais jovens, puxando-os para o seu universo por contágio. Porque é preciso honrar Zé Mário e a sorte de termos sido seus contemporâneos, retribuindo o seu exemplo e o seu contributo. Porque os tempos não estão fáceis e há poucos com a sua fibra, é preciso garantir que Zé Mário Branco, de 77 anos, do Porto, se manterá sempre muito mais vivo do que morto. Fica escrito: contai com isto de mim e para o resto.
(Crónica publicada na VISÃO 1397 de 12 de dezembro)