Correr é a minha principal prática espiritual, religiosa. É quando eu dou de comer ao espírito. A minha vida não me permite estar sozinho quase nunca. Mesmo quando estou sozinho em casa estou sempre agarrado a alguma guitarra, o meu arado, a tentar lavrar qualquer coisa, a obedecer a uma obsessão antiga, de sempre. Mas para tornar a terra fértil é preciso não estar com a mão na massa, é preciso, no meu caso, ir pelo Parque da Cidade abaixo até ao Edifício Transparente, virar à esquerda, passar junto ao Castelo do Queijo, ir por ali afora, I Bar, sempre junto ao mar, subir a rampa da praia de Gondarém (a minha praia), passar junto ao rio, subir a escada dos gatos na Cantareira, subir a escadaria das Torres da Pasteleira, atravessar a Marechal, Cristo Rei, casa outra vez. Sempre o mesmíssimo caminho, nunca faço outro. É esta a minha missa, o meu culto, o meu espaço e tempo de ligação com o Divino, o Uno, o Indivisível, o Absoluto, Deus, o “Universo”, como dizem as personagens das séries americanas atualmente. Também frequento missas católicas, mas nestas corridas o meu cérebro, talvez pelo movimento, talvez pela mudança da paisagem, talvez por estar sozinho, talvez por tudo isto, entra numa espécie de flacidez e desprendimento que não ocorre em mais circunstância nenhuma da minha vida. Quase sempre (a menos que esteja a chover) vou de headphones espetados nas orelhas a ouvir música. E é através do vasto e fértil cancioneiro da Música Popular que Deus se faz ouvir em mim. Ou o Universo.
Fico com a ideia de que se terá forçosamente de empregar o termo dos filmes americanos caso se pretenda que o nosso interlocutor permaneça na conversa. Ouço música através do Spotify e meto umas listas aleatórias. O Spotify conhece-me bem, sabe os meus gostos, os algoritmos vão-nos encurralando no nosso mundinho, que bom que é, que prático. E certas frases, de certas músicas, quando cantadas de certa forma, a única possível, assomam aos altifalantes dos meus headphones nas precisas alturas em que o meu espírito se permite meditar sobre qualquer (i)matéria que as torna imediatas e magicamente propositadas. Parece miraculoso, é miraculoso. Vou eu a pensar na perecidade do nosso corpo, no quanto eu penso que o nosso corpo deve simplesmente servir o propósito de servir os nossos mais elevados propósitos, por oposição à ideia que nos vendem, e nós tão consistentemente compramos, do autoenvelhecimento, do bem-estar como finalidade em si, dos cartazes de cremes antirrugas, e canta-me o Tom Waits “the face forgives the mirror, the worm forgives the plow”, com aquela voz de sábio, alma de poeta velho, e estas palavras reverberam em mim a luz de escritura sagrada. Palavras sábias como as que ouvi dum certo Luís Saramago que conheci no Crato há mais de 20 anos, na sequência de um ferimento num polegar no cumprimento do seu ofício: “isto é carne de cão, é para estragar”, mantra que tantas vezes repito quando o espírito se permite fraquejar ante as exigências a que a vida sujeita o corpo que a ela se dispõe. A cara perdoa o espelho como a minhoca perdoa o arado que a faz perecer. Lembra-me outras palavras sábias, que todos nós devemos uns aos outros, para que contemos com os melhores esforços de cada um, naquilo que a cada qual compete, para que o Todo conte com as nossas brancas, rugas, olheiras, contusões, refluxos gástricos e cabelos brancos, que nos entreguemos como quem diz este é o meu corpo, este é meu sangue, que é como quem diz comei e bebei, que é como quem diz isto é carne de cão, é para estragar, que é como quem diz the face forgives the mirror, the worm forgives the plow.
(Opinião publicada na VISÃO 1396 de 5 de dezembro)