O SNS tem estado, sob a liderança política do PS, debaixo de um fogo de artilharia pesada constante. As Ordens, dos médicos e dos enfermeiros, os sindicatos de todos os quadrantes e profissões, os diferentes partidos políticos e alguns líderes de opinião, transformaram o SNS no saco de boxe em que se bate porque sim, provavelmente para se treinarem para putativas vitórias. À mínima falha instala-se uma espiral crescente de insatisfações, denúncias e reclamações, que colocam o SNS no pelourinho da incompetência e os responsáveis políticos num tormento infernal, não sabendo para onde se virarem. Apresentam-se imagens de instalações degradadas, doentes que morrem por falta de resposta terapêutica atempada ou por transferências hospitalares negligentes e irresponsáveis, aumento inusitado de óbitos maternos, bebés que nascem sem rosto, inquéritos sobre a falta sistemática de medicamentos nos hospitais e nas farmácias comunitárias, uma médica que vê muitos doentes e fica a chorar de exaustão, e uma série de listas de espera verdadeiramente obscenas, de mais de um ano.
Outra frente de ataque prende-se com a insatisfação profissional, em que médicos, enfermeiros, assistentes técnicos e operacionais, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico e terapêutica e outros profissionais reclamam melhores condições de trabalho, mais efetivos e aumentos remuneratórios, muitas vezes fora de qualquer sentido da realidade.
Entretanto, e contrastando com este cenário de caos, o SNS vai evoluindo e apresentando resultados dignos de qualquer país desenvolvido, não nos envergonhando no cotejo entre os melhores, como ainda recentemente registei nesta coluna a propósito do relatório da OCDE deste ano, “Health at a Glance”. Já em 2018, Portugal apresentou excelentes resultados em Saúde, com uma esperança de vida à nascença no pelotão da frente, uma taxa de mortalidade infantil exemplar, uma taxa de mortes evitáveis aos 70 anos das mais baixas entre todos os países da OCDE e um comportamento no tratamento do cancro que ombreia com os países mais ricos do mundo, a par de avanços significativos no controlo do HIV e na cura da hepatite C. Simultaneamente, vamos constatando aumentos significativos no contingente profissional do SNS (mais cerca de 15 mil profissionais na passada legislatura) com o aumento da cobertura dos portugueses em médicos de família para cerca de 96% (um crescimento próximo dos 10pp em 4 anos), e com muitos grupos profissionais a crescer a uma média de 7%, quando a atividade do SNS cresce a 1 ou 2%.E assistimos, ainda, à redução sensível de horários em quase todas as profissões, reposições de valor em horas de qualidade e extraordinárias, descansos compensatórios pagos aos médicos, incentivos para a sua colocação em zonas carenciadas na ordem dos 40%, etc.
Importa dizer que o reforço do financiamento da saúde tem sido, neste Governo PS, maioritariamente destinado aos Recursos Humanos e, também, em terapêuticas inovadoras, que provocaram a subida da despesa hospitalar em medicamentos acima dos 18% nos últimos 4 anos. É claro que este investimento tem deixado de lado a modernização do nosso parque tecnológico, a necessidade imperiosa de recuperação de instalações e a construção de novos equipamentos. O dinheiro não chega para tudo e as opções que foram feitas responderam prioritariamente às expetativas criadas nos diferentes setores profissionais.
Fala-se muito em subfinanciamento na saúde, fazendo passar a ideia de que mais dinheiro resolveria a maioria dos problemas. Puro engano. Colocar mais dinheiro no SNS sem uma operação de reengenharia que promova modelos integrados de resposta, uma liderança efetiva na gestão, novas carreiras e novos modelos remuneratórios, representará maior desperdício de recursos e, a prazo, tudo voltará aos mesmos vícios e disfunções.
Entretanto, o recente relatório da UTAO sobre a situação financeira do SNS é bem ilustrativo do crescente aumento da dívida do SNS, cujo passivo atingiu em 2018 o valor de 3,8 mil M€, com cerca de 90% correspondente a dívida comercial, ou seja, já integrada no passivo por ser considerada vencida. Isto significa que se continua a gastar tendencialmente mais, mas sem suporte orçamental, o que é diferente de subfinanciamento. O Governo tem disfarçado esta dívida com injeções extraordinárias de capital, mormente nos Hospitais EPE, que somaram entre 2014 e 2018, um valor próximo dos 1,5 mil M€. Este modo de financiar os hospitais, começando o ano com um orçamento de receitas manifestamente inferior às despesas esperadas e oferecendo, em desespero natalício, pequenas bolsas de capital para pagar as dividas mais antigas, tem sido prática corrente há várias décadas, prejudica enormemente a boa gestão dos serviços e encarece os custos. Os gestores sentem-se objetivamente desresponsabilizados, porque ter dívidas é uma rotina que não cria limites a mais despesa e esses reforços traduzem-se, muitas vezes, em oportunidades de fazer nova despesa de curto prazo, sem visão estratégica e assumindo novos compromissos que fazem crescer a dívida. É um ciclo vicioso infernal, fruto da incapacidade do Estado em sanear a suborçamentação crónica das instituições do SNS e responsabilizar efetivamente as administrações.
O que se pode concluir da atual situação financeira do SNS é que a despesa não cessa de aumentar e as dívidas também não. Ou seja, e ao contrário do que se possa pensar, em serviços públicos de saúde, mesmo que por vezes com falhas de material, as despesas operacionais vão sempre depender da procura de cuidados e dos avanços tecnológicos, mesmo que isso acarrete aumento da dívida. A menos que o Estado se torne insolvente e o SNS colapse.
Qual a razão para esta aparente incoerência entre os bons resultados, o aumento da despesa pública e a insatisfação de muitos dos stakeholders do setor? Há uma componente política que não pode deixar de ser considerada: os partidos da direita, para além de uma oposição despeitada face ao modo como a geringonça foi constituída e perderam o poder, pretenderiam uma evolução aberta do SNS, mais liberal, com mais participação do setor privado na gestão e na prestação de cuidados de saúde, em linha com o que apresentaram nos seus programas eleitorais; os partidos à esquerda, fiéis defensores dos interesses profissionais, reclamam a admissão de mais pessoas, mais emprego público, mais regalias e mais serviços. Todos parecem esquecer-se de que nos anos da Troika, o SNS perdeu anualmente mil milhões de euros no seu orçamento, sendo ao nível da OCDE um dos países que mais regrediu na despesa pública e mais subiu na despesa das famílias. Se quiséssemos melhor ilustração das iniquidades que se agravaram em Portugal não encontraríamos melhor explicação. E, no entanto, é agora, quando o Estado encetou, timidamente é certo, o reequilíbrio da despesa pública, que surgem as críticas mais severas.
Afinal, qual é a realidade e a parte que mais conta para se avaliar o nosso SNS: as suas disfunções e a lista de casos que todos os dias chegam ao nosso conhecimento? Ou os resultados em saúde que nos orgulham no cotejo internacional? Eu diria que ambas contam e devem ser escrutinadas. Não é justo valorizar apenas as primeiras, mais a jeito dos que procuram o combate político baseado no sensacionalismo e na demagogia. Mas também não é aceitável deixar passar esta lista de casos sem uma ação enérgica de combate à má prática, à fraude e à irresponsabilidade.
A falta de liderança gestionária que impõe regras, cria métricas inteligíveis e simples para avaliar os desempenhos e retira daí as respetivas consequências para todos, vai permitindo manter os serviços em autogestão, a trabalhar a meio tempo, sem uma visão estratégica conjunta, sem aproveitamento do potencial clinico de ganhos, associados às sinergias entre diferentes especialidades, e em que os caprichos e os pequenos poderes se sobrepõem ao interesse geral. Por isso se tem a sensação de que há falta de recursos, quando o que há é, muitas vezes, falta de responsabilidade.