Cerca de nove meses de gestação são necessários para o nascimento de um bebé. Mas após nove meses de bebé nascido, percebo que mais de nove meses de transição são necessários para nascer uma mãe. É um longo processo de transformação e adaptação, nem sempre fácil, de uma vida para outra, de um corpo para outro, de uma identidade para outra. E por muito que tenhamos desejado e planeado este momento, a passagem para a maternidade (de primeira viagem) é sempre um embate entre as expectativas e as realidades (múltiplas e tantas vezes contraditórias) de cada experiência.
Ora, andava eu neste redemoinho de emoções, com a vida em carne viva, girando os pratos da euforia, da exaustão, do instinto de sobrevivência e da bebedeira de ocitocina, quando li em algum lado a palavra perfeita para descrever o processo pelo qual estava a passar – matrescência (tradução da expressão inglesa matrescence, conceito cunhado pela antropóloga Dana Raphael em 1973).
Matrescência alude tanto a maternidade quanto a adolescência, precisamente porque pretende fazer um paralelo entre o processo de transformação de uma mulher em mãe e a forma como a adolescência transforma crianças em jovens adultos. Ambos são processos de transformação hormonal, fisiológica, identitária e emocional, com impactos profundos na forma como nos comportamos, como vemos o mundo e como nos definimos como pessoas. Um corpo que se transforma é só a dimensão menos óbvia do processo, porque nada fica como dantes.
Tal como na adolescência, passamos pela fase das mudanças de humor bruscas e intensas. Ninguém sofre como nós, mas ninguém ama como nós. A fase do pós-parto é mesmo essa montanha-russa emocional, em que as hormonas, o cansaço extremo e a novidade absoluta nos fazem voltar aos prantos e acessos de raiva da adolescência, mas também ao amor assolapado de quem ama pela primeira vez, com toda a força, vendo tudo a cor-de-rosa rendado e corações.
A sensação de melancolia e solidão também pode ser muito semelhante. Parece que ninguém nos compreende e que, passado o entusiasmo inicial, todos voltam para as suas vidas, enquanto nós ficamos presas no loop das tarefas domésticas e do cuidado com o bebé, com a mesma sensação de isolamento e incompreensão das letras de rock alternativo para adolescentes urbano-depressivos. Já para não falar da tendência para a identificação grupal com quem está a passar pelo mesmo, tipo tribo urbana mas de recém-mamãs. Muito potenciada pelo advento dos fóruns online e das comunidades de Facebook.
A matrescência, tal como a adolescência, implica uma espécie de luto pela identidade que deixamos para trás. Mas sendo uma troca de pele, é muito mais do que isso. Porque não são só o corpo e o espírito que mudam, é a vida. O tempo já não é nosso e deixamos de nos relacionar com o mundo da mesma forma. O eixo sobre o qual giram todas as coisas passa para o exterior. E já não somos nós o centro do mundo, a prioridade, a ordem por trás das vontades, passando a viver em função de outras necessidades.
Sendo um processo de transição, uma passagem, tal como a adolescência, vai acontecendo no tempo. Não nos tornamos mães quando nos põem o bebé no colo. Vamos acordando cada dia mais mães. Como quem amolece o couro de uns sapatos novos com o andar. A cada passo mais, mais confortáveis. Até que já não tenhamos memória de onde nos aleijavam, porque já sararam as feridas e agora parecem uma segunda pele.
Como na adolescência, a matrescência é tempo de grandes aventuras e descobertas. Há o entusiasmo das grandes estreias e o frio na barriga dos primeiros encontros. Como na adolescência, a matrescência deixará saudades. Não porque foi tudo fácil, nem porque a vida era melhor, mas porque era tempo de aproveitar cada minuto como estando suspenso, e de viver tão intensamente, que na avidez dos dias tudo passa a correr.
(Opinião publicada na VISÃO 1395 de 28 de novembro)