Era uma vez um pirata que era todo de pau menos uma perna. Tudo o que tinha de humano morava naquela perna: risos e pranto, mentiras e sonho. Com exceção do calcanhar, o pirata era todo ele de Aquiles. Através daquele membro inferior, o pirata via, ouvia, comia, bebia e chorava com saudade de quem já tido sido. Quando não estava ocupado a saquear, o pirata passava o tempo a olear e envernizar as suas madeiras. Quem vive no mar, reza contra o Sol e salitre. O pirata aprendia que o clima, nos tempos de hoje, se converteu numa fatalidade.
O pesadelo dos salteadores do mar não é a tempestade. É a calmaria que faz murchar as velas e imobiliza a viagem. Mais do que essa fatal bonança, o que verdadeiramente atormentava o nosso pirata era o caruncho. Todos os invernos, o navio era posto a seco, deitado na areia da praia para catarem os bichos que roíam o casco. O pirata não suportava aquela visão. Naquele momento, ele dava conta de quanto era irmão dos navios. Ele e as carcomidas tábuas partilhavam os mesmos veios, os mesmos nós, a mesma aposentada seiva.
Certa vez, ao conferir os despojos de um navio que assaltara, o corsário encontrou uma bela princesa, escondida por detrás de uma toalha de mesa branca. Envolta nesse alvo manto, a princesa se ergueu e, nessa contraluz, ganhou o fulgor de uma noiva em véspera de casamento. A beleza daquele momento fez estremecer toda a perna do pirata.
– Como te chamas, minha bela princesa? – perguntou ele, voz tremente. E a princesa respondeu, altiva:
– Branca de Neve já foi o meu nome. Mudaram-no para evitar conotações raciais. Pocahontas foi um segundo nome. Também o mudaram porque soava a apropriação cultural. Cinderela foi o terceiro. Mas também foi sol de pouca dura porque, segundo disseram, reforçava o estereótipo da madrasta malvada. Dá-me tu um nome, meu querido pirata.
– Pois, vais-te chamar Teca.
– Gosto – disse ela
– É uma madeira rara e preciosa – explicou o pirata.
O pirata deu ordem à tripulação para que o deixassem a sós com aquela inesperada aparição. Sentiu o coração pulsar como um machado golpeando um tronco: ele estava perdidamente apaixonado. Ofereceu dez anéis à princesa Teca e prometeu-lhe uma viagem de núpcias às Caraíbas. Não foi preciso mais: a moça declarou prontamente que aceitava a intimação de noivado. Demoradamente elogiou a madeira do noivo, o seu grão, a sua rigidez, os seus veios. O corsário duvidou da acuidade visual da moça.
– Não sabes, minha querida, como me envergonho de ter tão pouco corpo que seja meu – confessou ele, cabisbaixo. A princesa tranquilizou-o. Durante anos namorou com um carpinteiro, não a afligia um pretendente tão lenhoso.
– Gosto de ti assim como és – disse ela. E acrescentou: – Ao menos não me falta espaço para gravar em ti os nossos nomes e desenhar juras e corações.
Quando já tinha a casca toda tatuada, o pirata assentou o seu único joelho nas pranchas do convés e pediu a princesa em casamento.
Na noite de núpcias, o chefe dos piratas mandou que todos os marinheiros ficassem em terra. No barco ficaram apenas ele, a princesa e a Lua. Pela primeira vez, o pirata foi dono de todos os mares. No passado, partilhara o leito com muitas. Mas nunca ele tinha viajado em olhos tão profundos. E gostou de se sentir naufragado. O pirata lera num livro roubado as regras do afeto: quem é amado a si mesmo pertence; quem é amante não é de ninguém. Nessas noites, o feliz corsário foi dele e não foi de ninguém. Até que, uma manhã, fulminante, a pergunta da princesa trouxe-o à realidade:
– Achas que um dia poderemos ter filhos?
Apesar da aparência diminuída, o pirata era de rápido raciocínio. E respondeu:
– Conheces a adivinha: com quantos paus se faz uma canoa?
A pergunta não foi feita para ter resposta. Não eram palavras o que eles buscavam. E deixaram que os corpos falassem, lençóis rasgados, águas endurecendo pedras. Durante muitas noites, o casal não saiu do camarote. Pela escotilha, os marinheiros escutavam o pirata gritar: à abordagem! Passaram-se semanas sem que o navio tivesse outro destino que não fosse um leito nupcial. Os tripulantes aguardavam na orla da praia, divididos entre a inveja e a impaciência. O seu chefe viajava agora por mares que nunca imaginara existirem. Com o andar do tempo, porém, uma tristeza foi enevoando os olhos da princesa. Fosse talvez uma premonitória náusea, talvez fosse o tédio – que é uma espécie de enjoo da alma. Quem sabe à noiva já não bastasse a humana perna? Ou lhe viesse a descrença de que filhos jamais nasceriam daquele tão inusitado amor.
– Vou partir por um tempo – anunciou o pirata. – Sei de um lugar onde me posso tornar inteiro – prometeu.
– Esperas por mim?
Meteu-se numa lancha e rumou para uma ilha conhecida por nela viver uma poderosa feiticeira. O pirata implorou que a bruxa lhe devolvesse a sua humana integridade.
– Sou uma feiticeira artesanal – escusou-se ela. – E isto é muita madeira para a minha varinha
– Dou-te toda a minha fortuna. Aliás, roubarei as fortunas todas do mundo e usarei a maior frota da História para as trazer para ti.
A feiticeira quis saber se o corsário tinha seguro contra terceiros. Só então meteu mãos à obra. As magias demoraram um tempo a serem preparadas. Mas os resultados foram surgindo: uns dedos de carne, primeiro. Depois, a outra perna, depois o rosto com dois redondos olhos da cor do sândalo. Até que, enfim, se completou o feitiço. Perante o espelho, o pirata não cabia em si de contente: todo de carne e osso, elegante e garboso como o mais belo dos príncipes. Decidiu que era altura de regressar mas que não o podia fazer sem que a feiticeira lhe devolvesse o seu antigo corpo de madeira.
– Quero guardar esse que fui durante tanto tempo – explicou.
– Se fosse a si não o levava – advertiu a mulher.
– E porquê? – quis saber o homem.
– As cobras não carregam consigo a antiga pele – respondeu a feiticeira. – Um dia – acrescentou –, vais chorar pelos tempos em que te alimentavas de luz e a seiva era o teu sangue.
O enfeitiçado, porém, não abdicou dos seus propósitos. – Sou pirata certificado – argumentou –, tenho os meus códigos, não abandono nunca os meus próprios despojos.
E assim, acompanhado pelo antigo corpo, o corsário regressou ao seu navio. Dentro da sua lancha seguiam, numa grande caixa, as suas velhas madeiras. Ao vê-lo chegar, a princesa chorou. Pensou o corsário que fosse de alegria. E deu uns passos de dança para melhor exibir o recente corpo. Mas a princesa não abrandou o pranto. O pirata não entendeu a razão daquela tristeza.
No dia seguinte, a princesa tinha desaparecido. Levou com ela a caixa com as madeiras. E deixou uma carta em que se lia o seguinte: “Foste um, voltaste outro. E sou fiel ao amor. Levo comigo o que em ti amei. E guardarei para sempre essa tua única eternidade.”
(Crónica publicada na VISÃO 1395 de 28 de novembro)