Até há algum tempo eu não apreciava assim muito de cada vez que me chamavam cantor pop. Achava algo desprestigiante. Quando eu era puto, aquilo que na altura se chamava pop era música de que eu não gostava, Ace of Base, Duran Duran e Madonna. Fui até consultar uma dessas enciclopédias de música de Cambridge, ou Oxford, ou lá de onde era, de proveniência sábia, e vinha lá que pop era o que se chamava a toda a música feita para vender às massas de adolescentes de 14 anos. Mas hoje em dia penso o contrário. Penso que, de toda a inevitável panóplia de categorias, géneros, estilos e correntes musicais, todas as outras que não a utilitária, frugal e singela “pop” me causariam a mais claustrofóbica das aflições. Algo em mim me sugere, como facto íntimo e indesmentível ao meu coração, que todos os géneros de música, quaisquer que sejam, têm algo de “autóctone”, de raça, de Denominação de Origem Controlada, de identidade protegida, de autossubmissão e de vassalagem, com dobermanns no portão. Nunca ninguém saiu de um concerto do Michael Jackson a dizer “isto sim, é pop”. Ou o contrário. Nunca ninguém acabou um disco novo do Bruno Mars com a sentença “isto assim já nem é pop nem é nada”. Quando os Metallica lançaram o álbum de 1991 que inclui a canção Nothing Else Matters, houve uma audição pública do álbum integral numa praça em Nova Iorque para os fãs. O pânico e a ansiedade da banda ante a reação a essa faixa em particular é algo de que eles ainda falam hoje em dia. Porque o thrash metal não permite deslizes. É vassalo de si próprio, como são os estilos de música, está na sua essência, e as suas tribos obedecem a um regulamento, a um código de conduta, a uma maneira de vestir, ser e pensar. O thrash metal, como o tango, é conservador.
Há regras. Os Metallica ficaram para sempre proscritos, de certa maneira. Levaram cartão vermelho, por causa desse álbum.
O estilo de música que promove a insubmissão e a transgressão submete-se a ter de condenar transgressões. Tal como o punk, por exemplo. A miúda de 14 anos no seu quarto forrado a pósteres da Bravo algures numa aldeia na Finlândia, a ouvir no seu Walkman a mixtape que inclui Nothing Else Matters ensanduichado entre I Will Always Love You e I Saw the Sign, não exclui ninguém, no seu coração Sempre Pop há lugar para todos. Na pop vale tudo, vale mostrar as partes mais pudicas da anatomia humana para vender discos, vale fazer playback, até Milli Vanilli vale (em que as vozes nem sequer eram as dos cantores). É por isso que eu considero que a música pop é a única livre, em que a transgressão total faz parte da tradição. Vale tudo, até não transgredir coisa nenhuma. Vale misturar jazz e hip-hop. Usa-se de todos os subgéneros sem pedir licença, como se fossem massa de fermento. A música pop é vadia, terrível, cigana, ninguém a salva. A música pop está a salvo de qualquer salvação. No fado também vale tudo, mas é preciso justificar aos guardiões da chave, é preciso discutir, regatear, é preciso que a UNESCO aprove, senão não entram os subsídios. É preciso que a transgressão pareça uma transgressão, e isso em si já quase não é transgressão nenhuma. A Madonna desafina em palco e ninguém tem nada com isso, porque não vem estipulado em lado nenhum que o cantor tem de cantar seja de que forma for. É por ser considerada o caixote do lixo da música que a pop se conserva sem ser de conserva, se salva a salvo de qualquer salvação. E isto, sim, é pop.