6 de novembro de 2019,
Início da tarde. Caminho em direção a casa. Tropeço. Saberei, daqui a pouco, que foi numa pedra saliente da calçada. Dou dois pulos desequilibrados, como se fosse um gafanhoto inapto. Estatelo-me no chão, descomposta. O embate do corpo ribomba por dentro, não há som que se lhe compare. Fico deitada de barriga para baixo, as pernas esticadas, o braço direito sob o corpo, a calçada está fria. A mão esquerda faz-se concha quando o sangue começa a escorrer da boca. Confirmo com a língua que parti dentes. Ainda não tenho dores. Só a dormência esquisita do choque. O sangue pinga da mão para a calçada, mais rápido do que a dor a chegar. Já chamaram a ambulância, daqui a nada tratam de mim. À minha roda, vários pares de sapatos.
– dê um jeito que a gente ajuda-a.
– alguém que vá ali ao restaurante pedir gelo.
Consigo dizer que não quero que me mexam, sei que isso pode ser perigoso. Mas aceito o saco de gelo na boca. O frio das pedras e do gelo alivia a quentura do meu corpo ferido. Alguém coloca um casaco sobre as minhas costas.
– a minha sogra também caiu há tempos, mas só se aleijou na perna.
– os velhos perdem a reação de amparar a queda com os braços, vão logo de cabeça.
Ouço as sirenes. O frio toma repentinamente conta de mim. Começo a tremer.
– já chegaram, já chegaram.
– Concentro-me na cara do paramédico que está à minha frente.
– tem um rasgão grande no lábio, é daí que vem o sangue.
– nome, idade?
– checa a hipotermia.
– siga esta caneta com os olhos.
Já dentro da ambulância, mais testes. Levam-me.
A cidade solavanca debaixo de mim. Os picos da dor têm uma cadência torturante.
Hospital de Santa Maria. Um edifício desmesurado. Sombrio. A boca já inchou e a compressa que me colocaram sobre o lábio dificulta-me a respiração. Tento arranjá-la e logo uma guinada de dor me faz mudar de ideia. Quieta, tenho de ficar quietinha. O tempo da dor é outro, mas no tempo normal já passaram mais de duas horas desde que a cabeceira da maca em que me deitaram está encostada contra esta parede. Não consigo perceber se isto é uma sala acanhada para as quatro macas que aqui estão, lado a lado, ou um hall grande ou um corredor largo. Sei que é onde esperam os amarelos, os doentes a quem puseram, na triagem, uma pulseira amarela. A maior parte deles está sentada
nas filas de cadeiras, ao correr das outras paredes em que as macas não encostam. Algumas dessas cadeiras estão ocupadas por pessoas que têm na lapela um autocolante que diz “Acompanhante” e por baixo o nome do amarelo que lhes pertence.um acompanhante por pessoa.
É o L. que me acompanha. De um lado para o outro, atravessam batas azuis, batas verdes e batas brancas.
Um bulício de feira. Ainda só me deram a vacina do tétano. Ao meu lado, um velho, muito velho, não dá acordo de si. Do teto excessivamente baixo, as lâmpadas florescentes vão descorando tudo. Reparo nas divisórias de pladur, nos canos dos ares condicionados, tudo me parece provisório. E a minha vida ainda mais.
Ouço o meu nome pelos altifalantes, Dulce Venâncio Cardoso, pequena cirurgia. O L. manobra a maca, tentando encontrar o caminho neste labirinto de salas, corredores e pessoas. Surge uma auxiliar que o ajuda. A maca bate numa esquina, um doloroso carrinho de choque. O gabinete para onde sou empurrada é pequeno. O médico mantém-se sentado na secretária, as mãos no teclado do computador, aparentando dificuldade em introduzir as informações que lhe forneço.então, o que temos aqui?
Deitada na maca, fico acima do médico e tenho de olhar para baixo. Explico tudo outra vez. Custa-me cada vez mais falar.
– tem de ser vista pela estomatologia e pela ortopedia. Torna a aguardar na sala que a chamem.
A compressa colou-se ao rasgão do lábio. E preciso de urinar.não há sala para a pormos com arrastadeira. Consegue aguentar?
Um dos acompanhantes come uma sandes com apetite. Outro explica ao telemóvel o acidente do familiar com uma serra e um toro de lenha. Gemidos. Quero fugir deste sítio e deste tempo. Canto-me, em silêncio: A Teresinha de Jesus deu uma queda, foi ao chão, encontrou três cavalheiros, todos três de chapéu na mão…
Outro gabinete. As portas estão sempre abertas. Batas entram e saem. Falam, acima de tudo, umas com as outras.
– nem queiras saber o que ele me contou quando fez banco comigo na semana passada.
Puxam-me o maxilar superior. Dói-me muito.
– estás a ver, foi tudo para dentro, deve ter fraturado.
Tenho de fazer uma TAC à cabeça, mas primeiro serei chamada para fazer um raio-X ao braço. Não chamam.
Só passado muito tempo, depois de o L. perguntar se
– se esqueceram de mim.
– minha querida, vamos lá tentar fazer isto sem a magoar muito. Consegue dobrar o braço?
Outra vez a sala de espera dos amarelos. Uma auxiliar vem conduzir-me ao serviço onde fazem a TAC. É preciso atravessar vários corredores, subir de elevador para outro andar. Mais corredores, novamente. Deslizo por eles.
Na nova sala de espera, há janelas para a rua. O mundo já se apagou lá fora. Anoiteceu há muito. É uma sala grande, com pouca gente. Mais silenciosa do que a lá de baixo.
E desesperadamente mais demorada. Quase não há batas. Será que sabem que me trouxeram para aqui? Tenho sede. E uma fraqueza que me faz fechar os olhos, apesar de estar desperta. Dizem-me que o jejum é necessário se tiver de ser anestesiada, é preciso esperar pelo resultado da TAC.
– vai a seguir. Hoje há muitos semis.
Alguém me explica mais tarde,
– os semis são os que estão entre cá e lá.
– tem de tirar os brincos.
Para descerem de volta às urgências, as macas têm de esperar por uma auxiliar que as venha buscar. Esperam muito, muito tempo. O L. diz que fixou o caminho,
– deixam-no levar-me.
Sala dos amarelos, de novo. As batas continuam a andar de um lado para o outro.
– ontem comi um bacalhau que nem imaginas.
É preciso mudar o cateter àquele.
Estou muito cansada, tenho dores, tenho sede, queixo-me ao L., não sei se consigo aguentar mais. Esclarecem que o relatório da TAC leva pelo menos uma hora a ser entregue. O L. pergunta,
– então porque não lhe fizeram logo a TAC, não veem como ela está?
O funcionário sugere-lhe que, ao sair, peça o livro de reclamações, se ninguém escrever, o diretor que passa por cá todas as manhãs acha que está tudo bem.
– basta verem as horas de entrada e de saída dos doentes e o que lhes foi feito.
Peço ao L. para não reclamar. Tenho medo de que depois me tratem mal. Sinto-me desprotegida. À mercê…todos três de chapéu na mão… Tanta laranja madura, tanto limão pelo chão, tanto sangue derramado dentro do meu coração.
Num gabinete, com dois jovens e apressados ortopedistas, digo que o braço me dói muito, não o consigo mexer,
– o raio-X ficou mal feito, mas de certeza que não o partiu. Se estivesse partido gritava de dores quando lhe estico assim o braço, percebe?
Amarelos, outra vez. Uma auxiliar acaba o turno e acena-me sorridente ao sair,
– as melhoras. Tudo a correr bem.
Volto ao médico, que parece ter dificuldades com a informática na ótica do utilizador,
– ainda está cá? Ainda não lhe suturaram o lábio?
A TAC não indica fratura, só que, entretanto, a estomatologia fechou. Fecha às 20. Vai ter de voltar amanhã por causa dos dentinhos. Agora devia ser vista pela plástica.
Amarelos. Como é que vou sair daqui?
Num gabinete com um jovem e calmo médico,
– a plástica não a atende, mas no lábio não ficam marcas. Depois da picada da anestesia, não sente nada. Vai ficar um lindo ponto cruz.
Dizem-me que posso ir embora. Dirijo-me para a saída. Estou exausta e continuo com muitas dores. Assim, como é que alguém consegue pedir o livro de reclamações? Passa da meia-noite. Chuvisca.