Boa parte da discussão em torno da Bolívia tem sido centrada em torno da alegada necessidade de saber se estamos perante um golpe de Estado (como sustenta a esquerda) ou uma contrarrevolução (como defendem os EUA e os seus aliados regionais). Ora, o debate é inconsequente.
Desde logo porque parece evidente que a deposição de Evo Morales configura, de facto, um golpe de Estado. Temos um presidente deposto por um órgão do Estado (as forças armadas) num processo que desafia o enquadramento constitucional vigente.
Mas o ponto é que isso diz pouco. Se é verdade que todos os golpes de Estado são ilegais (por definição), não é menos verdade que existem golpes legítimos e golpes ilegítimos.
A esmagadora maioria de nós concordará, por exemplo, que o golpe de Estado do 25 de Abril foi legítimo. Tratou-se de derrubar um regime ditatorial para o substituir (contra a vontade de alguns, é bom não esquecer) por um regime democrático. Da mesma forma, parece-me pacífico afirmar que o golpe que abriu portas ao regime de Pinochet foi profundamente ilegítimo. Allende tinha sido democraticamente eleito e o regime de Pinochet passaria à História como uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul.
Este critério da legitimidade, muito mais difícil de definir, mas muito mais útil do que o da mera legalidade, parece-me aliás ser o que está subjacente à ideia Lockeana de “direito à insurreição”, segundo a qual um povo teria o direito (natural?) de se sublevar sempre que o governo a quem tivesse confiado a nobre tarefa de zelar pela proteção “da sua vida e propriedade” viesse a fazer um uso arbitrário e tirânico do poder que lhe foi confiado para fins radicalmente diversos. Por maioria de razão, se o usasse para “empobrecer, assediar ou subjugar” o seu próprio povo.
Visto sob este prisma, e tendo em conta que Morales tentou por várias vezes subverter, ele próprio, a ordem constitucional boliviana (tentando candidatar-se pela quarta vez, depois de essa opção lhe ter sido recusada em referendo e tentando falsificar os resultados dessas mesmas eleições), parece haver razões para argumentar que há elementos suficientes para legitimar (que não obviamente para legalizar) a deposição de Morales.
O problema é que a história não acaba aqui. E um mínimo de honestidade intelectual obriga a que se reconheça que a tomada de poder por parte da senadora Jeanine Añez está longe de parecer regular ou transparente. Mais grave, a violência com que o novo regime está a esmagar a revolta nas ruas (com a ONU a falar já de uso desproporcional da força) não pode deixar nenhum democrata minimamente sossegado.
Não se trata, pois, e concluo, de chorar pela deposição de Morales. Ilegal, mas legítima. Menos ainda se trata de perder tempo com definições bizantinas. O que a situação reclama é que a comunidade internacional se una em torno da exigência de eleições livres e rápidas, desejavelmente organizadas sob égide ou controlo de uma qualquer instância credível e imparcial. Infelizmente, nada disso parece poder passar-se. De um e de outro lado, as cartas estão já marcadas. O que aí vem não será bonito.
(Opinião publicada na VISÃO 1394 de 21 de novembro)