Nas últimas semanas, o encerramento da urgência pediátrica do Hospital Garcia de Orta, em Almada, nos períodos noturnos, tem preocupado todos os portugueses e afetado muitas crianças e pais que normalmente procuram aquele serviço.
A falta de médicos tem sido o principal óbice apresentado para a resolução do problema, com a Ordem dos Médicos, os Sindicatos e as associações de doentes a manifestarem o seu protesto contra o Governo por não admitir mais médicos.
O que falta saber é se o diagnóstico dos problemas da pediatria do HGO se esgota ou tem primordialmente a ver com a falta de médicos. Parece-nos bem que não, como tentaremos explicar.
O serviço de pediatria do HGO foi, no arranque do Hospital, pensado de uma forma inovadora. O seu Diretor, Torrado da Silva, concebeu-o como um serviço integrado, em que os especialistas hospitalares e os médicos de família trabalhariam articuladamente, quer na resposta à doença aguda, quer no acompanhamento dos casos mais complexos ou de natureza crónica. Em coerência com esta estratégia, as urgências de pediatria tinham, como resposta, equipas mistas, constituídas por um chefe de pediatria, internos e médicos de família, que tinham uma atividade complementar no HGO, dentro do seu horário de trabalho. Na retaguarda da urgência estariam os pediatras com subespecialidades, que estariam em permanência na resposta às crianças internadas, nomeadamente os neonatologistas.No principio, tudo correu sem falhas e com normalidade, até ao momento em que a Ordem dos Médicos considerou que a constituição das equipas de urgência de pediatria não correspondia aos seus padrões, para efeito de reconhecimento de idoneidade formativa. Exigiam mais pediatras e não valorizavam a presença dos médicos de família. Importa dizer que a urgência de pediatria do HGO recebe cerca de 150 utentes por dia (24 horas), sendo 75% dos casos respeitantes a cuidados de saúde primários, como acontece aliás, de forma genérica, em todos os serviços de urgência portugueses.
A posição da Ordem dos Médicos, pouco consentânea com a realidade do serviço e com a visão integrada dos cuidados de saúde, obrigou o Hospital a rever a composição das escalas, reforçando a presença de pediatras na urgência. E aqui, entram também razões de organização interna, para percebermos a pouca flexibilidade e o desperdício de sinergias que poderiam contribuir para uma gestão mais eficiente dos recursos médicos do serviço.
O serviço de Pediatria do HGO dispõe de 29 especialistas, mas um número significativo apenas realiza tarefas eletivas ou de subespecialidade, como neonatologia, desenvolvimento, hematologia, ORL,pneumologia,cirurgia, cardiologia,neuropediatria, nefrologia,por exemplo.Esgotam o seu tempo nestas tarefas e não fazem urgências.
Outros, porque têm mais de 50 anos, deixam de fazer urgências à noite ou todo o dia se tiverem mais de 55 anos. Em resumo, dos 29 médicos referidos, sobram 7 médicos para a urgência e apenas 4 para fazer noites.
Acresce, neste cenário inacreditável, que os jovens especialistas não têm acesso ao trabalho eletivo das subespecialidades pediátricas, por imposição dos seus pares mais velhos, fazendo com que muitos deles não queiram trabalhar apenas na urgência e rejeitem, por isso, contratos com este hospital.
Por outro lado, importa referir que estamos numa sub-região em que existem 18 USF, 14 das quais em modelo B, e em que todos os cidadãos têm médico de família. Isto significa que estão em exercício cerca de 300 médicos de medicina geral e familiar que, não só poderiam dar uma melhor resposta à doença aguda, como também poderiam realizar algumas horas por semana na urgência de pediatria, no contexto do seu trabalho complementar contratualizado. Neste momento estes profissionais também se negam a fazer este trabalho.
Entretanto, os grupos privados têm já também disponível uma oferta em pediatria na zona de Almada, contando nalguns casos com pediatras que abandonaram o HGO.
É neste contexto que temos que olhar para a urgência pediátrica do HGO e não tomar a nuvem por Juno, seguindo o discurso cínico e demagógico daqueles que batem no peito em defesa do SNS e das crianças de Almada, mas que não dão um passo para ajudar a construir uma solução razoável, que proteja as famílias e permita gerir melhor os recursos disponíveis, afinal suficientes, como se demonstra. É esta a espuma dos dias e esperemos que não nos cubra a cabeça. Até quando continuaremos a assistir a este desperdício de recursos e aos graves prejuízos que isto acarreta para a população? O Governo poderá ajudar?