Somos, todos nós, mesmo sem o questionarmos, herdeiros e construtores. Dependentes e Criadores. Nessa tensão somos, por vezes criadores, estando ao “ombro de gigantes”, parafraseando Bernardo de Chartres e, por outras recusamos tudo o que vem de trás, criando verdadeiras revoluções. Mas numas e noutras, a herança lá está, assumamo-la ou recusemo-la.
Quando há mais de 2700 anos se compilava e redigia a Odisseia, talvez Homero o fizesse já com o fascínio que viria a marcar indelevelmente este clássico: a viagem que ficaria lavrada na nossa língua através do nome da personagem principal: a viagem de Ulisses, o Odisseus, seria não apenas a sua “odisseia”, mas ficaria para sempre como a imagem de uma odisseia, o modelo de viagem atribulada, “homérica”!
E esta imagem de viagem cristalizada no nome de quem fez a que nos serve de matriz, mais não é que imagem de caminho, de sofrimento, mas também de sonho e de desejo de chegar a um final tantas vezes imaginado e querido, mas outras tantas quase abandonado por ser impossível. Isso é uma odisseia, e isso é, ao mesmo tempo, o desejo utópico de seguir, de prosseguir mesmo quando se sabe nunca chegar. Ítaca é o porto de uma chegada que não se sabe se terá lugar.
Poucas vezes, como hoje, me foi dado compreender o alcance do episódio que narra a chegada de Ulisses à ilha dos Feaces, sendo aí acolhido. As similitudes com os dias de hoje são gritantes. Náufrago, como tanta gente que ontem e hoje enceta fugas nesse mar interior, Ulisses vai dar a uma praia, inconsciente, como morto. Já é o único sobrevivente do seu frágil bote, de toda uma turba que se lançou ao mar depois da terrível guerra nas praias de Troia.
Sem o saber, qual moribundo, o príncipe de Ítaca dera à costa do reino dos Feaces. Será a filha do rei a recolher o náufrago e a indicar a Ulisses como agir para ser bem acolhido. Nausícaa, de seu nome, oferece ajuda sem nada pedir em troca.
E é aqui que se dá “Europa”. Ulisses é acolhido, é alimentado, é lavado e vestido, e só depois se pergunta quem é e de onde vem. É isto a hospitalidade e o humanismo que há quase 3.000 anos marcava a narrativa de Homero: afinal, Ulisses iria encontrar a solução dos seus problemas nas mãos e nos atos de quem nem lhe perguntara o nome antes de o alimentar. Deverá ser este o nosso ADN cultural.
Mas o medo que nos tolhe é constante e matiza a utopia. Diz Ulisses ao chegar, como náufrago, a essa Ilha dos Feaces, onde criariam as condições para o seu regresso a casa, a Ítaca. Este episódio seria a sua salvação, a consumação do seu tempo, mas, tal como hoje, era o medo a abrir a narrativa:
“Ai de mim, a que terra chego de novo?
Serão eles homens violentos, selvagens e injustos?
Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses?” (Homero, Odisseia, canto VI)
…. E eram dados à hospitalidade, sim. Mas não eram tementes aos deuses, tanto que desrespeitarão as ordens de Poseidon e levarão Ulisses a casa contra a vontade desse deus, arcando com a sua vingança irracional.
E a Europa sempre foi isso: o desejo de busca e de superação, contra deuses e homens, mesmo que a viagem de Ulisses seja já de dez anos, sem saber se terminará… Contudo, hoje, depois do esquizofrénico século XX, vivemos uma crise de identidade, entre um regresso aos nacionalismos e um projecto comum.
Cioran, tal como Fukuyama, tem neste assunto palavras importantes que devemos reter. Teremos esgotado a nossa capacidade de pensar o impensável? De pensar a Utopia?
Obviamente, e basta olhar para a Atlântida de Platão ou para a ilha de Utopia de Morus, esse sonho de sistema, de forma de vida, está sempre fora. Reside sempre em algum lugar que se deve atingir ou imitar, uma ilha de S. Brandão que se confunde com a dimensão de tempo, um espaço e um lugar fora da nossa temporalidade, quase escatológico.
Mas hoje, o que se torna desafiante, é ficar. Em vez de, simplesmente, ver noutras paragens a solução não tocada pelos nossos males, interessa agora retomar a nossa própria herança e recheá-la de valores universalistas, valores para além do que as religiões definem como barreiras, como muros.
O universo das religiões radica exactamente na tensão criadora de cultura e de civilização em que facilmente delas somos devedores, ao mesmo tempo que as achamos perdidas no nosso tempo, vindas de modelos e paradigmas desadequados.
Mas, a base da Religião, retirada a crença numa revelação ou num Livro Sagrado, é o Humano, para ele se dirige e dele advém. A gramática da Religião é o Humano nos seus medos e anseios. Por isso, a Religião é resignação e é, também, utopia. Tudo é o Humano. De ambas somos herdeiros.
A busca da identidade é Ulisses e o seu regresso a Ítaca, o reencontro com a esposa abandonada há vinte anos, o confronto com o filho que nunca conhecera, nascido, criado e tornado adulto sem a presença do pai. É isso mesmo: um regresso para dentro de si, à sua essência, mesmo quando se esteve vinte anos fora numa luta de que nem se conhecem as razões.
A principal marca de afastamento da Europa ao Cristianismo está nessa aparente incapacidade que temos de nos recriar com a nossa própria matéria. Brincando com a frase de Shakespeare, a matéria dos sonhos temos de ser nós mesmos, não o que nos está exterior.
O Cristianismo sempre foi uma Utopia, um modelo, um desejo a atingir. Um projecto seminal, como afirma Tolentino Mendonça (Expresso (Única), 27.06.2009) que nasce de um quase nada e se transforma numa civilização prenhe de valores como os Direitos Humanos.
Nas culturas mais marcadas pelo Cristianismo, hoje, para além dos grupos de natureza iniciática, poucos cultivam a palavra Irmão, o frater. Felizmente, a ideia de Irmão, de Fraternidade, não morreu nos muros dos mosteiros e dos conventos, onde continuou a ser usada até aos nossos dias, mas laicizou-se e hoje é impossível não a compreender sem deambular pelos filósofos europeus do Iluminismo, pelos teorizadores do Direito e da Lei Natural. Foram vários os documentos fundantes da Europa de hoje que teorizaram e trouxeram para a política a ideia de Fraternidade, de amar o outro de forma incondicional, apenas pelo facto de ele existir.
Corria o ano de 1948, num clima marcado pelo fim do grande conflito mundial, e nascia a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade, votada a 10 de Dezembro. No seu artigo 1.º nascia uma das mais belas formulações de humanismo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
A base, indo até esse imperativo de espécie, era o nascimento. Todos nascemos iguais. Por isso livres, e por isso devemos agir em Fraternidade uns com os outros. Tão simplesmente lógico e belo, tal como todos nascemos com as mesmas heranças culturais e a mesma capacidade de utopia.
Tal como Malraux afirmou que o século XXI será religioso, ou não será, com a nossa herança cristã, mas também judaica e islâmica, mas superando-a numa sociedade laica e livre, é necessário afirmar que um regresso à Utopia no século XXI será Humanista e Universalista, ou não o será.