Vamos começar pelo mais importante: Salvador é um bebé-milagre. Chegou cheio de luz. Um sobrevivente que se impôs à escuridão e à miséria e à agonia, e que gritou alto ao mundo que a sua vida não seria desperdiçada. Chamemos a Salvador o bebé-milagre, e não o menino do lixo. A forma como o olhamos, como sociedade, daqui em diante, pode fazer toda a diferença na vida deste ser-humano-assombro nascido dos escombros, num lugar para lá do imaginável, para lá da dignidade humana. Qual pequeno milagre que brota da escuridão, ele menino-luz está aí, forte e saudável. Ele importa, ele importa-nos, e ele tem o direito de ser feliz. “Bem-vindo, puto!”, dizia a legenda feliz do INEM com a hashtag #vaisserfeliz e #boasorte, quando partilhou esta imagem da criança, imediatamente após ser resgatada. Bem-vindo, pois!
Pensemos agora, acima de tudo, em Salvador, quando falamos desta história tão desoladora e, simultaneamente, tão mágica. Pensemos, daqui em diante, no seu superior interesse, no que lhe convém a ele, ser minúsculo de força imensa, pensemos no que como sociedade temos de fazer para o proteger. Já lhe falhámos antes, enquanto ainda era projeto de vida negado. Deixámos a sua mãe, Sara, uma jovem de 22 anos, sozinha a viver grávida debaixo de uma ponte, sem quaisquer cuidados nem apoio. Deixámos que o desespero e o desamparo a levassem para esse lugar habitado por demónios, onde se forma uma carapaça feita de dor e de angústia, onde não penetram os mais instintivos sentimentos que fazem de nós gente. Deixámo-la chegar à condição sub-humana de se prostituir para sobreviver, de parir como um animal no meio da rua, de arrancar das entranhas um bebé e o seu cordão umbilical, e de o abandonar, sem dó nem piedade, num contentor do lixo. Deixámos que Sara, no fim da linha, se transformasse em bicho à vista de todos.
E ainda deixámos, sem qualquer noção nem complacência, que fosse enclausurada “preventivamente“ numa prisão, em vez de levada para um hospital ou para um hospício, quando tantos monstros mais fortes e mais violentos do que ela andam por aí à solta a aguardar julgamento, depois de ameaçarem e de baterem anos a fio nas mulheres.
Salvador, o bebé-milagre, que nasceu contra tudo e contra todos, está aí. E tem, repita-se porque nunca é demais, o direito de ser feliz. Tem direito a crescer longe dos escombros e das memórias atrozes – longe da mãe, que deve ser entendida, apoiada, mas não redimida, e longe da família que falhou a Sara. Tem direito a não ficar preso na engrenagem de um sistema enleado em burocracia e rigidez, tantas vezes inflexível aos interesses dos menores. Tem direito a ser entregue a um colo quente e doce, a ser vestido como um príncipe, a ser amado e adorado como o menino-milagre que é. Tem direito a fintar prazos, a sobrepor-se aos interesses da mãe que só o gerou e pariu e da família que não é, dos juízes, dos assistentes sociais, de todos nós, adultos. Tem direito a contar mais, a gritar mais alto.
Falhámos-te uma vez, Salvador, desculpa-nos. Pensa que o mundo está cheio de histórias que começam trágicas, mas que têm finais felizes. Não podemos voltar é a falhar-te agora.