A ADSE está em graves riscos de se tornar insolvente já em 2026. Quem o diz é o Tribunal de Contas no Relatório recente da “Auditoria de Seguimento à ADSE”.
De facto, se nada for feito, já a partir deste ano haverá saldos anuais negativos, o que configura o esgotamento dos excedentes existentes no ano de 2026. Envelhecimento acelerado dos beneficiários, inexistência de rejuvenescimento dos quotizados, diminuição das receitas e aumento brutal dos encargos em virtude do maior consumo de cuidados de saúde, determinarão o esgotamento das reservas, os deficits anuais e a insolvência deste subsistema.
O Tribunal de Contas é particularmente cáustico com o Governo, ao atribuir-lhe responsabilidades em dois planos: a inépcia registada nas propostas de alargamento da ADSE a novos quotizados com potencial para serem contribuintes líquidos de imediato; a incapacidade política de impedir o abuso do SNS em cobranças à ADSE do que corresponde a responsabilidades próprias, quer nas Regiões Autónomas, quer num conjunto vasto de serviços, como os cuidados continuados, transporte de doentes, medicamentos, cuidados respiratórios domiciliários ou fiscalização de baixas por doença. Não há grandes dúvidas sobre a justiça de muitas destas críticas que, no essencial, acusam o Estado de se apropriar indevidamente do património que apena diz respeito aos quotizados e seus beneficiários, para desenvolver políticas orçamentais de contenção de despesas e de coesão social que não competem à ADSE.
Para compensar ou resolver temporariamente estes problemas, o Tribunal de Contas produz um conjunto de recomendações que incluem medidas excessivamente temerárias e controversas. Desde logo a ideia de transformar os beneficiários isentos de contribuição por baixos rendimentos em responsabilidade do Estado, passando este a ter que pagar um valor por cada um deles à ADSE. São cerca de 14% dos aposentados, tendencialmente mais idosos e grandes consumidores de cuidados. Será que os contribuintes portugueses aceitariam este encargo, quando temos um SNS universal, geral e tendencialmente gratuito, precisamente pelo esforço tributário solidário de todos nós? Ou prefeririam que esse dinheiro fosse investido no SNS, para todos?
É também o Tribunal de Contas que propõe um modelo de contribuição dos quotizados baseado no risco e não apenas no rendimento, o que corresponde a uma alteração estratégica radical no modelo solidário que suporta este subsistema. Com esta proposta, poderíamos , no limite, travar o acesso a pessoas/agentes públicos, com idade e riscos elevados e, simultaneamente, criar tabelas de prémios próximas dos seguros comerciais. O princípio de solidariedade subjacente à ADSE desapareceria rapidamente e esta seria transformada em mais um seguro de grupo de natureza comercial.
É também o TC que propõe a redução dos descontos mensais dos quotizados para 12 meses por ano em vez dos 14 atualmente em vigor. Percebe-se o argumento se tivermos em conta que as pessoas só vivem 12 meses por cada ano. Já será difícil percebê-lo se atentarmos no facto dos descontos terem como finalidade acorrer a todos os doentes beneficiários, incluindo os pobres e os isentos…e os respetivos encargos terem subido 11,1% entre 2015 e 2017, enquanto os proveitos apenas subiram 1,3% no mesmo período.
O TC acredita que será possível viabilizar financeiramente a ADSE se se aumentar seletivamente (só aceitando os potenciais contribuintes líquidos) a base de quotizados, se se proteger a ADSE dos abusos do SNS (cobranças abusivas e dividas não pagas),e ,assim, aumentar a receita. Diz mesmo que a sustentabilidade da ADSE dependa muito da promoção da receita e não exclusivamente do controlo das despesas.
É justamente aqui que não estamos de acordo. As despesas da ADSE com cuidados de saúde prestados aos seus beneficiários nunca foram objeto de qualquer análise custo- benefício e nas condições atuais não é possível fazê-lo. Ou seja, a multiplicidade de prestações pagas pela ADSE não são objeto de escrutínio sobre a sua pertinência, adequação e qualidade dos resultados obtidos. É comum o mesmo utente socorrer-se de diferentes prestadores para o mesmo sintoma, com intervenções terapêuticas paralelas ou sobrepostas, que não trazem valor para a sua saúde e bem- estar. A prerrogativa da livre-escolha dos prestadores como fator de adesão à ADSE, como refere o TC, é também o handicap que conduzirá à sua insustentabilidade a médio prazo. O uso abusivo de serviços de saúde, associado ao aumento brutal de encargos é uma das caraterísticas destes modelos de seguro, já em vias de extinção por todo o mundo. Em sua substituição estão hoje em vigor modelos de managed care e de clinical governance, que antes de mais promovem a saúde dos seus quotizados, previnem as situações de doença e são capazes de prever o perfil dos seus utilizadores à luz de modelos de agrupamento de utentes por patologias e classificados por carga de doença. Assim, ficaríamos a perceber a pertinência das intervenções e consequentemente a sua racionalidade.
A ADSE necessita urgentemente de um choque de conhecimento e transparência sobre os cuidados que são prestados aos seus beneficiários. Hoje os sistemas de informação e de codificação clinica permitem acompanhar com rigor as patologias dos doentes, a sua complexidade e a sua gravidade. E é evidente que os custos têm que ser coerentes com essa informação. A ADSE tem que que mudar o paradigma da relação que tem com os diferentes operadores, estabelecendo modelos compreensivos de pagamento, associados ao risco dos doentes e aos ganhos que se esperam obter. A ideia, muitas vezes propalada, de que o “shopping around” em cuidados de saúde nos dá uma sensação de liberdade e de facilidade de acesso que nos conforta e protege, tem muitos inconvenientes: promove o consumismo, faz-nos por vezes correr riscos desnecessários e aumenta insustentavelmente os custos. Há quem goste disso, mas não coloquem um subsistema de base solidária sujeito a esses caprichos.
E muito menos peçam aos cidadãos em geral que cubram esses custos quando o dinheiro não chega, como se refere na última proposta conhecida do Conselho Diretivo da ADSE quando sugere, de novo, a contribuição da entidade pública empregadora na quotização correspondente a cada aderente.