Foi um dos acontecimentos do ano: no dia 10 de abril, os terráqueos ficaram a conhecer uma fotografia de um buraco negro, felizmente situado à distância confortável de 55 milhões de anos-luz. A importância científica da descoberta é inegável. Na revista Science, por exemplo, afirma-se que este resultado constitui “uma confirmação poderosa [ênfase meu] da teoria da gravidade, ou da relatividade geral, de Albert Einstein, que foi usada há 80 anos para prever buracos negros”.
Também no ano em curso, curiosamente, assinalou-se o centenário do primeiro grande sucesso empírico da teoria da relatividade geral. O eclipse solar de 29 de maio de 1919 proporcionou a oportunidade de determinar se, como esta teoria previa, a luz das estrelas se curvava de determinado modo nas imediações do Sol. Dyson, Eddington e Davidson conduziram a experiência — a experiência de Eddington, como se tornou conhecida, o que poderá não ter agradado aos outros dois — e a previsão observacional, muito surpreendente, ocorreu mesmo.
O que se inferiu daí? Como, agora, na observação do buraco negro, que a teoria da relatividade geral fora confirmada. A confirmação de uma teoria por dados empíricos, note-se, não corresponde à sua estrita comprovação — i.e. à conclusão de que esta é verdadeira, para lá de qualquer dúvida possível. É hoje um truísmo, aliás, que as teorias das ciências empíricas não admitem esse género de comprovação. Quando se afirma que uma certa teoria foi confirmada por certos dados empíricos, está-se a dizer apenas que esses dados incrementaram a probabilidade de essa teoria ser verdadeira.
A experiência de Eddington impressionou o filósofo da ciência mais famoso não só do século XX, mas porventura dos séculos em geral. Karl Popper, pois. A teoria de Einstein tinha sido sujeita a um teste rigoroso, por isso muito arriscado, e saído dele incólume. Este procedimento metodológico, salienta Popper, contrasta com os artifícios próprios da pseudociência, que permitem «encaixar» numa teoria qualquer descoberta empírica concebível.
Como a teoria de Einstein se saiu bem num teste muito arriscado, isso, embora de forma alguma a comprove, há de tê-la confirmado, não? Não! — diz Popper. Não?! Não — diz ainda Popper —, esse sucesso experimental corroborou a teoria. Só isso.
Há agora que aclarar os termos “confirmação” e “corroboração”, que na sua aceção comum são sinónimos ou quase, de tal forma que mesmo Popper, distraidamente, por vezes não se inibe de falar de confirmações de teorias. Já apontei o que, nestas discussões, se entende por “confirmação”: uma teoria é confirmada por dados empíricos quando esses dados a apoiam num certo grau. A confirmação, portanto, é algo positivo. Já a corroboração é somente a ausência de algo negativo: uma teoria corroborada, para Popper, é uma teoria que, tendo sido sujeita a testes empíricos dignos desse nome, não foi refutada ou falsificada. Se uma teoria tiver sido submetida a muitos testes rigorosos e tiver sobrevivido a todos eles, terá um elevado grau de corroboração — o que até pode parecer uma coisa boa (a palavra ilude), mas na verdade não passa da ausência de uma coisa má, a refutação.
O que diria Popper da imagem do buraco negro, então? Diria que a esta não corresponde uma “confirmação poderosa”, nem mesmo uma confirmação ténue, da teoria da relatividade geral. Essa teoria foi simplesmente, e uma vez mais, corroborada pela nova informação empírica.
O facto de a palavra “corroboração” soar a algo positivo, mesmo que modestamente positivo, leva muitas pessoas (incluindo muitos cientistas) a não perceber a perspetiva falsificacionista de Popper, que vai além (mesmo muito, muito além) do truísmo referido sobre a falibilidade da ciência. Pois o falsificacionismo diz-nos que a observação desempenha um papel inteiramente negativo ou eliminativo na avaliação de teorias científicas: através da observação, podemos refutar uma teoria científica, mas nunca confirmá-la, por pouco que seja. Por muitos sucessos experimentais que uma teoria acumule, nunca poderemos dizer que, provavelmente, ela é verdadeira. Esses sucessos limitam-se a manter viva a mera possibilidade de ela ser verdadeira.
Se o falsificacionismo fosse verdadeiro, não teríamos boas razões para confiar na ciência. Afinal, se as teorias científicas não gozam de nenhum grau de confirmação, se nunca podem passar de conjeturas irrefutadas, como poderá ser racional aceitarmo-las, considerarmo-las verdadeiras, provavelmente verdadeiras, ou sequer boas aproximações à verdade? Se uma teoria estiver corroborada, mas não confirmada, não teremos razões para considerá-la falsa — mas tão-pouco teremos razões para considerá-la verdadeira. Se a física atual, digamos, consiste num corpo de teorias que no máximo estarão meramente corroboradas, acreditar nas melhores teorias atuais da física será irracional. Assim sendo, parece que também será irracional confiar nas tecnologias (aviões e computadores, por exemplo) que constituem aplicações dessas teorias.
Tudo isto é inacreditável. O que terá levado Popper, que sempre se apresentou como um defensor da racionalidade, a advogar uma posição tão extrema, que em última análise aniquila as credenciais da ciência como empreendimento racional? A resposta está século XVIII. David Hume concebeu um argumento cético que põe em causa todo o raciocínio indutivo — e, assim, a possibilidade de a observação confirmar teorias. Popper aceitou esse argumento, mas tentou mostrar que a ciência passa muito bem sem indução ou confirmação. Falhou.
Seria interessante examinarmos agora o argumento de Hume, pois seria. Isso, no entanto, terá de ficar para outra ocasião.