Esperemos bem que sim! A vitória da esquerda, indiscutível (apesar de Tancos), com a liderança reforçada do PS, parece deixar antever uma legislatura de continuidade nas principais políticas públicas, tentando proteger rendimentos mais baixos, populações mais desfavorecidas e mantendo públicos os serviços de saúde.
Já aqui o dissemos, a Saúde não precisa apenas de mais dinheiro. Precisa de reformas sérias e consequentes, que melhorem o acesso dos doentes e a qualidade dos cuidados. Terá o próximo Governo, capacidade de ir a jogo, desmontar argumentos e criar novos modelos de organização do trabalho, mais bem pagos, mas mais eficientes e produtivos?
Os resultados eleitorais apontam para um governo PS fortalecido, mas dependente de uma geringonça, mais ou menos plural. E aqui podem começar os problemas quando se quer avançar seriamente nas reforma do SNS. Os partidos mais à esquerda, na ansia de defender os interesses legítimos de quem trabalha, esquecem-se, muitas vezes, de que os doentes dependem da dedicação, da qualidade e do trabalho árduo desses profissionais. E que isso pressupõe, exigência, responsabilidade e resultados. Quando as coisas não correm bem, não basta pedir mais recursos, falar em “burn out” e reduzir horários. Olhemos, primeiro, para a forma como o SNS gasta anualmente quase 10 mil milhões de euros e procuremos áreas de desperdício, procedimentos burocráticos inúteis, despesas sem controlo, fornecimentos de serviços externos sem critério, horas extraordinárias injustificadas, equipas sobredotadas, etc., e encontremos soluções para melhorar o rendimento dos serviços e assim tratar mais doentes. Se o próximo Governo, pela pressão dos seus aliados, começar a pôr dinheiro em cima dos problemas e se deixar enredar na disputa política mais superficial, arrisca-se a não dar passos significativos na melhoria do SNS. A direita bramirá sempre a bandeira do SNS, mas no fundo aplaude as suas fragilidades, porque anseia pela privatização da saúde, como, aliás, propôs nos seus programas eleitorais agora derrotados.
Mas é também da esquerda do futuro Governo que voltarão as propostas radicais de acabar com as PPP na saúde. A desonestidade intelectual de quem argumenta com falsidades e clichés ridículos a gestão em PPP, deverá merecer do próximo Governo uma atitude frontal em sua defesa, enquanto os nossos hospitais não beneficiarem das reformas que acima genericamente se apresentam. Os relatórios que as ARS e os gabinetes ministeriais têm produzido e, sobretudo, da parte da Unidade Técnica de Apoio às Parcerias, ilustram as vantagens da gestão PPP face á gestão pública direta, confirmada em rankings comparativos independentes, objetivos e insuspeitos. Não se consegue entender como foi que o anterior Governo se deixou enredar numa teia infernal de negação desta realidade, sem a desmentir com a autoridade que lhe confere a sua missão de defesa do interesse público. As PPP são melhores para os doentes, modernizam a rede pública de hospitais e saem mais baratas para o Estado. Que dificuldades terá o próximo Governo, agora com legitimidade reforçada, em provar isto? Espera-se aqui mais determinação e menos contas de mercearia….
Não há dúvida que a despesa pública em saúde deve subir, note-se. Olhando para os países da EU o que vemos é um nível de despesa pública próximo dos 80% e entre nós não chega aos 67%. O que significa que muita procura é canalizada para serviços privados, cujas receitas têm subido, desde a Troika, de forma exponencial. Muita desta procura é alimentada pelos subsistemas, sendo de destacar o papel de locomotiva desempenhado pela ADSE, cuja existência e modelo de seguro deve ser frontalmente analisado e reorganizado com os beneficiários.
Os investimentos em novas instalações, novos equipamentos, na manutenção de estruturas e na organização do serviço ao cliente (atendimento, pontualidade, não cancelamentos, urbanidade, privacidade,informação, qualidade hoteleira,etc.) a par da integração de cuidados e da criação de serviços de proximidade, são cruciais para travar a fuga da classe média para os hospitais privados. O investimento em formação e desenvolvimento de pessoal não médico, nas áreas da gestão, das tarefas administrativas, dos sistemas de informação e do apoio aos doentes, é absolutamente crucial nesta nova legislatura, para que os serviços respondam com profissionalismo e eficácia às necessidades globais dos doentes e do “staff” clinico.
A reforma dos cuidados primários, com a criação das USF, não provou ainda a sua eficácia e continuamos a ser, na Europa, o país que mais urgências tem por habitante, só comparável ao terceiro mundo. Haverá vontade política em discutir este tema, desnudar a realidade e avançar com um modelo consistente de integração de cuidados? Ou é preferível fingir que está tudo bem e abrir mais USF dos tipos A e B (com mais autonomia e mais bem pagas) e reduzir o número de utentes por médico de família?
O financiamento dos hospitais e a sua autonomia de gestão continuam a ser eufemismos mal disfarçados, e seria bom que se responsabilizassem as administrações pelos resultados, mas dotando-as de meios efetivos de gestão (nos recursos humanos e nos projetos de modernização) adequados aos seus objetivos e aos seus compromissos.
A sangria de recursos para pagar fornecimentos médicos externos, quando há capacidade instalada ou passível de ser adquirida, significa custos mais elevados, evitáveis com investimentos reprodutivos de médio prazo. A contratação de profissionais, pelas formas mais estranhas, a empresas de trabalho temporário (para isso, afinal, existem) não dignifica a prestação de um serviço público de saúde, não dá confiança nem segurança aos doentes e torna os serviços muito mais caros. É tempo de revermos as condições de trabalho, as carreiras e as remunerações, criando incentivos que premeiem o fim das listas de espera, a diminuição da infeção hospitalar, a redução da mortalidade evitável ou dos dias de internamento hospitalar, a rentabilidade dos blocos operatórios.
O Ministério da Saúde não pode continuar a ter uma atitude meramente tática perante os problemas, sempre com medo dos interesses mais poderosos e incapaz de fazer ruturas e avanços em benefício dos cidadãos. O caso do INFARMED fica para a história como um triste exemplo do que não pode ser feito nesta nova legislatura: jogar com os interesses particulares, circunstanciais ou não, em detrimento do interesse público.
A negociação estratégica com Ordens e sindicatos da saúde de todas estas questões é crucial para se chegar a mudanças imperativas, sem convulsões e sem atritos inultrapassáveis.
O caderno de encargos do próximo ministro da saúde é, assim, desafiante e difícil, e por isso pressupõe, liderança, coragem e trabalho árduo. Boa sorte!