Muitas pessoas preocupam-se com os animais e também com o ambiente. Poderá parecer que estas duas preocupações não poderão deixar de se harmonizar na perfeição. Contudo, levadas ao extremo, na verdade são irreconciliáveis.
Para tornar isto claro, começarei por descrever duas personagens: o animalista e o ambientalista. O primeiro julga não só que os animais têm interesses (i.e. que há coisas intrinsecamente boas e más para os animais, considerados como indivíduos), mas também que esses interesses, sendo o de não sofrer o mais saliente, colocam limites éticos significativos ao que é aceitável fazer-lhes. O ambientalista, por sua vez, atribui valor intrínseco à integridade dos ecossistemas ou à biodiversidade (ou a ambas as coisas, claro), entendendo, além disso, que desse valor resultam razões morais para proteger o ambiente.
É possível, sem inconsistência, ser animalista e ambientalista. O caso muda de figura, como sugeri, a partir do momento em que consideramos estas perspetivas nas suas versões mais radicais. Antes de chegarmos a esse momento, gostava de apresentar outra perspetiva extrema. Podemos chamar-lhe antropocentrismo radical. Este consiste na ideia de que, pelo menos no domínio da biosfera terrestre, só os seres humanos têm importância moral.
Será que quem subscreva esta ideia terá de negar que há uma exigência ética de proteger o ambiente? De forma alguma. Embora não seja um ambientalista no sentido que dei ao termo, o partidário do antropocentrismo radical poderá dizer (e, como as coisas estão, esperemos que o diga) que é imperioso protegermos o ambiente — mas, acrescentará, esta exigência justifica-se inteiramente em termos dos interesses e direitos dos seres humanos, tanto dos atuais como dos futuros.
Do mesmo modo, quem perfilhe esta perspetiva, ainda que repudie o animalismo, poderá condenar a crueldade para com os animais. Mas como? Aqui o antropocentrista tem uma história mais estranha para contar. A crueldade para com os animais é errada apenas porque acaba por ser má para os seres humanos. Mais vividamente: pontapear o cão indefeso é errado não porque o pontapé faça mal ao cão (embora faça), mas porque o ato degrada o caráter do dono da bota, fomentando nele uma predisposição para a violência que — quem sabe? — torná-lo-á perigoso para os seus semelhantes.
Embora tenha sérias reservas quanto ao ambientalismo, declaro-me irreservadamente animalista. Pontapear o cão é errado, pelo menos em parte, por causa do sofrimento escusado que é infligido ao canídeo. Se existe uma boa razão para desconsiderar em absoluto o sofrimento daqueles que não pertencem à nossa espécie, e assim para negar a aparente trivialidade que acabei de enunciar, confesso que nunca a encontrei.
Mas há animalistas e animalistas. Passemos aos mais radicais, ou seja, a pessoas como Gary L. Francione. Este filósofo e jurista, ao invés de julgar apenas que os animais têm interesses eticamente significativos, atribui-lhes direitos morais. E revela-se muito generoso nessa atribuição, pois entende que todos os seres sencientes têm exatamente o mesmo direito de “não serem tratados como propriedade” — direito este que inclui, entre outros, o direito à vida. Ora, os caracóis são seres sencientes, isto é, ao que tudo indica têm algumas sensações. Para Francione, isso basta para terem um direito à vida tão robusto como o nosso. Assim sendo, matar intencionalmente um caracol será tão grave como fazer isso a uma pessoa.
Por nos apresentar um pires de caracóis como uma atrocidade, esta é uma perspetiva que não consigo levar a sério. Chamem-me “especista”, mas, se tivesse de sacrificar um caracol (ou mesmo periquito, ou mesmo um javali) para salvar Francione, salvava Francione. Um pouco contrariado, mas salvava.
No campo ambientalista, encontramos um bom exemplo de radicalidade na “ética da terra” do jovem filósofo J. Baird Callicott, que entretanto deixou de ser jovem e já não pensa aquilo que escreveu nos anos oitenta. Num artigo dessa década, Callicott apresenta o seguinte como nada menos que o princípio supremo da ética: algo é moralmente correto na medida em que promove a estabilidade, integridade e beleza dos ecossistemas. Temos aqui uma ética holística, pois foca-se não em indivíduos, humanos ou de outras espécies, mas nos “todos” biológicos em que estes se inscrevem — i.e. nos ecossistemas, que não sentem coisa nenhuma.
Se o princípio indicado fosse mesmo a lei ética suprema, o que teríamos de concluir? Entre outras coisas, que os animais têm importância apenas na medida em que contribuem para as propriedades desejáveis dos ecossistemas. Não é difícil perceber como esta perspetiva colide até com as formas mais brandas de animalismo. Consideremos, por exemplo, o caso das chamadas “espécies invasoras”. Para o ambientalista radical, é imperioso exterminar os animais destas espécies, seja qual for o sofrimento infligido às infortunadas criaturas (que para começar nunca quiseram invadir um ecossistema). Do seu ponto de vista, o interesse dos animais em não sofrer, bem como o seu interesse em continuar a viver, jamais poderá estar acima da integridade dos ecossistemas. E o que dizer dos animais domésticos? Estes não passam de aberrações sem nenhum papel ecológico de relevo. Que desapareçam, também!
Com bastante propriedade, a ética do jovem Callicott foi apodada de “ecofascista”. De facto, o fascista vê a nação como o ambientalista radical encara o ecossistema: em ambos os casos, os indivíduos só valem enquanto componentes de um todo muito mais vasto, investido de importância máxima.
Vale a pena acrescentar que, por vezes, o animalista e o ambientalista andarão de mãos dadas, mesmo que ambos enveredem pela radicalidade. Por exemplo, ambos condenarão a pecuária intensiva, ainda que por razões inteiramente distintas: o primeiro defenderá a sua abolição por esta impor, sem nenhuma verdadeira necessidade, um sofrimento massivo aos animais,; o segundo, claro, dirá que esta prática é errada em virtude dos seus efeitos perniciosos nos ecossistemas.
Há uma convergência que, curiosamente, se verifica sobretudo quando as duas perspetivas se extremam. É que tanto o animalista radical como o seu congénere ambientalista caem na misantropia mais exacerbada. Para este último, os seres humanos são acima de tudo uma praga. Não uma praga qualquer, mas de longe a pior que se passeia pelo planeta. Para o animalista, por sua vez, os membros da nossa espécie apresentam-se como exploradores desprezíveis da restante criação animal. Mesmo na convivência doméstica com cães e gatos, ele (i.e. Francione) julga discernir uma relação exploradora — e não, não está a sugerir, razoavelmente, que os gatos nos exploram. Pelo que tenho observado, ambas as formas de misantropia parecem estar bastante em voga e mostram-se capazes de coexistir na mesma cabeça.
NOTAS
1. Se quiser perceber melhor o território conceptual em que estas discussões se desenrolam, poderá ler este meu texto.
2. Nesta antologia que organizei há uns anos, poderá encontrar nada menos que três textos de Callicott: o seu artigo infame dos anos oitenta; um artigo posterior, que oferece uma defesa de um ambientalismo moderado; antes de tudo isso, uma introdução ao artigo infame, escrita de propósito para a antologia, na qual o filósofo se retrata, confessando-se especialmente embaraçado com o que escreveu sobre os animais domésticos.
3. Os livros de Francione dizem todos mais ou menos o mesmo. Se quiser ler um, pode ser este.
4. A minha crítica à ética da terra está neste artigo.