Podia ser apenas uma histeria provocada pelo alucinado líder da juventude popular comprometido com a técnica das fake news de Bolsonaro para aterrorizar um eleitorado específico à conta de jovens trans. Podia. Já seria grave. Mas o episódio sobre crianças de carne e osso – algumas delas ouvidas na primeira pessoa no Parlamento sem que CDS ou PSD se tivessem oposto à norma que o despacho da falsa polémica concretiza – é uma gota num oceano mais vasto que silenciosamente se alastra em Portugal.
Os miúdos e miúdas em causa nesta falsa polémica foram o pretexto da ocasião, porque tivemos outros e haverá outros, para uma direita infiltrada dentro da direita social-democrata e democrata-cristã que é populista e reacionária e quer tomar de assalto as casas onde se instalou. Mais do que o tema concreto da concretização dos direitos consagrados na lei da autodeterminação da identidade de género, promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa, suportada em recomendações internacionais e na evidência científica, interessa reter a argumentação dos seus detratores, porque é essa argumentação “modelo” que serviu no episódio, mas que serve para tudo o que seja progresso, direitos de minorias ou ameaça ao seu projeto populista demolidor de uma direita decente que faz falta.
A argumentação é velha. Está lá toda nos supremacistas brancos cristãos aquando da luta dos movimentos cívicos antirracistas norte-americanos, por exemplo. Leiam Baldwin. Leiam a jurisprudência do “separate but equal”. Baldwin dá-nos conta da resistência da América branca e cristã à integração do negro como parte da História americana, como “um de nós”, porque, na verdade, a argumentação pró-segregação, que teve respaldo na jurisprudência “separate but equal”, entre tantos respaldos, insistia nos “direitos da maioria”, que não podiam ser prejudicados pelos da “minoria”, assim como agora se diz em relação à população LGBT. Quando o Supremo Tribunal americano revogou a sua doutrina e obrigou à integração de negros nas escolas, os protestos foram brutais. Para que raio queriam os negros e as negras “invadir” as escolas dos brancos? Os negros eram um lobby perigoso como a comunidade LGBT é agora o mesmo para os fanáticos. As “nossas” escolas, gritavam os cristãos brancos na rua. A ideia era a de que os negros já tinham liberdade, propriedade, acesso à profissão, presença no espaço mediático, educação, para quê o “histerismo” de quererem tudo e fazerem de uma causa minoritária um incómodo para a maioria?
O que o Estado de direito democrático atual carrega em si é precisamente a ideia de que os direitos das minorias são contramaioritários (Dworkin). O estado da nossa civilização mede-se (também) pela forma como tratamos as minorias, não as subjugando à vontade da maioria. Precisamente, o discurso do líder da JP, de João Almeida, de Raquel Abecasis e, claro, da já assumida extrema-direita, renega a conquista da modernidade. Além de apostar no esmagamento das minorias pela vontade da maioria, usa as técnicas modernas de manipulação dos factos que levaram Bolsonaro ao poder.
Estou certa de que, viajando no tempo, estas figuras expulsariam Rosa Parks do seu lugar e juntar-se-iam às mulheres e aos homens cristãos pela segregação dos anos 60. Se a direita decente não se defende, é bom que a esquerda perceba que, à primeira crise internacional que troque as voltas ao poder, há uma onda conservadora, populista e antidemocrática pronta para o Portugal dos pequeninos.
(Opinião publicada na VISÃO 1382 de 29 de agosto)