Que Bolsonaro tem uma visão obscurantista sobre a ciência, sobre o ambiente e sobre os desafios climáticos já ninguém terá muitas dúvidas. Até por isso, mais do que contribuir para o debate polarizado entre detratores e apoiantes de uma figura a que estará reservado um lugar menor na História, gostava de suscitar uma reflexão mais ampla: a evidente falência do nosso sistema de governo global para fazer face a ameaças sistémicas e em particular a ameaças ambientais. Sendo que a crise amazónica é, a este respeito, muito ilustrativa.
De facto, e por mais que o sr. Bolsonaro repita o seu mantra de conotações salazarentas (“A Amazónia é nossa”), dificilmente se pode esperar que o mundo assista impávido à destruição de um ecossistema que é responsável por abrigar 10% de toda a biodiversidade do mundo, que contribui com 20% de toda a água doce que entra nos oceanos e que absorve cerca de 8% de todo o CO2 que a Humanidade emite para a atmosfera. O problema é que escasseiam os meios legais e políticos para que a comunidade internacional force o Brasil a fazer uma defesa efetiva da Amazónia. E não são as ameaças da Noruega (acabar com o financiamento do fundo Amazónia) ou de França e da Irlanda (travar o acordo da UE com o Mercosul) que vão mudar significativamente o estado das coisas, uma vez que assente a poeira de mais uma tempestade mediática.
A ordem internacional está, há vários séculos, organizada em torno do paradigma dos estados soberanos, com fronteiras e territórios definidos, e sobretudo com quase total autonomia política.
Acontece que este é um ordenamento que nasceu e se consolidou numa era em que o nível das interdependências entre os vários países, nomeadamente em matéria ambiental e de clima, não era minimamente comparável com o que é hoje.
Os problemas sistémicos globais reclamam naturalmente soluções globais e remetem para a ideia de um novo território planetário. Gostemos ou não da ideia, a verdade é que hoje, mais do que cidadãos do Brasil ou de Portugal, somos todos cidadãos de um mesmo planeta que temos o dever coletivo de proteger. Ora, é bem evidente que esse dever não se cumpre dentro do pleno respeito pelo princípio da soberania absoluta dos Estados. A tragédia é que esta conclusão está a tornar-se clara no preciso momento em que, por todo o mundo, assistimos ao recrudescimento dos nacionalismos, dos unilateralismos, dos isolacionismos.
A este problema acrescenta-se outro. Os nossos sistemas políticos, agora na sua ordem interna, estão pensados para fazer dos cidadãos existentes– a cada momento no tempo – a fonte última do poder político. É essa, aliás, a própria definição de soberania popular. Mas mais uma vez, o modelo faz algum sentido quando aplicado numa era em que a capacidade de os cidadãos vivos comprometerem significativamente a liberdade das gerações vindouras é limitada ou quase nula. Sendo que a sua aplicação cria mais problemas do que soluções quando, tal como hoje notoriamente acontece, temos coletivamente uma capacidade gigantesca para, através das nossas ações, nomeadamente sobre os recursos do planeta e sobre o clima, condicionar amplamente as opções das gerações que vão suceder-nos.
É, portanto, para mim evidente que os desafios sistémicos globais, e em particular os desafios ambientais e do clima, reclamam também mudanças nas arquiteturas políticas globais e nacionais.
É imperioso – e urgente – aceitar debater a limitação das soberanias nacionais na ordem internacional e introduzir, nas nossas ordens constitucionais, mecanismos de autolimitação das nossas liberdades para preservar as liberdades dos cidadãos que vão suceder-nos. Será este, aliás, um dos grandes desafios do nosso tempo.
Mas só uma cidadania global, atuante e com voz própria, pode, realisticamente, impor a mudança.