Quando se apresenta ao mundo na badana dos seus livros, José Tolentino Mendonça começa por dizer que é poeta, e depois sacerdote e a seguir professor. Foi esta sua dimensão poética, que vê como “a arte de resistir ao seu tempo”, que cativou o Papa Francisco, que acaba de o nomear cardeal. Um poeta olha o mundo por outros olhos, e é disso exatamente que a Igreja Católica precisa. Quem acompanhou o percurso de José Tolentino Mendonça – e eu sou há muito uma admiradora à distância – sabe que ele escolhe a bondade, a simplicidade, a sensibilidade e a subtileza ao mesmo tempo que dispensa a máscara, o artifício, a burocracia, o poder.
José Tolentino, o bibliotecário do Vaticano, é agora também o cardeal poeta, um dos poucos elementos do Colégio Cardinalício, e um dos três cardeais portugueses que podem votar num conclave para eleger um novo Papa – uma honra reservada a poucos, e uma escolha pessoalíssima de Francisco. Já pessoalíssima tinha sido a sua nomeação para guiar a reflexão dos exercícios espirituais da Cúria Romana durante a Quaresma, uma semana em que o Papa e os cardeais se juntam para pensar a vida e o mundo, o presente e o futuro.
O tema escolhido por José Tolentino nestes textos, publicados pela Quetzal, foi o Elogio da Sede, uma sede que nos guia. E o que é mais extraordinário neles – uma belíssima leitura para crentes e não crentes – é que começam pelos textos da Bíblia mas vão por aí a fora por caminhos inesperados e formidáveis. Quase consigo imaginar a Cúria de boca aberta de espanto, ao ouvir falar do escritor uruguaio Eduardo Galiano, questionada sobre o que está afinal dentro de um abraço. Ou quando foi convidada a pensar na parábola da nossa sede através de uma peça de Eugène Ionesco (sim, o pai do teatro do absurdo, embora ele preferisse a palavra insólito), que conta a história de um homem que tem sempre fome e sede, uma inquietude e um desejo sem objeto. Ou quando ouviu passagens de O Principezinho, este livro singelo que José Tolentino diz que, não sendo uma obra religiosa, é uma espécie de mistagogia contemporânea por nos incitar à procura do sentido da existência, a uma peregrinação interior. Adoraria poder ser mosca e ver esta Cúria Romana ao ouvir histórias sobre a inveja de uma psicanalista – Melanie Klein – que José Tolentino evocou, seguindo-se de Kierkegaard (esse crítico da prática do cristianismo como uma religião de Estado), do hindu Gandhi ou do judeu Primo Levi. E assistir ao convite para sair do seu recato e olhar o mundo à sua volta, o mundo das periferias, para que “a espiritualidade não se torne uma bolha de conforto ou uma forma de escapismo”.
Não admira que a saudação final do Papa Francisco tenha sido de genuíno agradecimento pelo apelo a uma abertura “sem medo, sem rigidez, para […] não nos mumificarmos nas nossas estruturas que nos fecham”. E por ter “recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o espírito também voa e trabalha fora”. “O senhor fez-nos ver como trabalha nos não crentes, nos ‘pagãos’, nas pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o espírito de Deus, que é para todos”, disse Francisco.
É por isso que Tolentino Mendonça como cardeal na Cúria Romana é um sinal dos novos tempos na Igreja Católica: é esperança, é tentativa de redenção, é pura poesia.