O Luís não gostará do título desta crónica nem de ser o assunto dela. Não devias ter escrito sobre mim, dirá, um trejeito de lábios a denunciar desconforto. Conheço-o tão bem que consigo prever como reage a quase tudo. Mas não podia não escrever sobre ele, em nada tenho tanto orgulho como naquilo que nos une.
Encontrámo-nos há vinte e oito anos. Tinha-me inscrito numas palestras sobre cinema organizadas pelo Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa a que pomposamente chamaram Curso de Introdução ao Cinema. Tentava então descarrilar-me da vida profissional de jovem advogada de oficiosos. As palestras decorriam num anfiteatro dos antigos estúdios da RTP da Avenida 5 de Outubro, agora um hotel. No espaço que, em 1991, era a receção – tenho ideia de uma decoração sombria em pretos, brancos e cinzentos, mármores e torniquetes metálicos – funciona agora o restaurante do hotel. As suas mesinhas e iluminação em cores pastel não conseguem esconder-me completamente o hall onde o Luís e eu nos conhecemos.
Ele também se tinha inscrito no curso de cinema, tentando descarrilar-se antes de entrar no túnel. O túnel era a imagem que usava para falar da condenação laboral a que quase todos os humanos estão sujeitos: chegado à idade adulta, o Luís estava prestes a entrar num túnel cujas únicas saídas eram a reforma ou a morte. E, se não se mostrava assustado, estava pelo menos apreensivo. Ele dava já aulas no Instituto Superior Técnico, talvez fosse tarde demais para evitar a entrada no túnel para onde apontavam os carris em que seguia, mas tentava criar respiradouros que tornassem a vida subterrânea mais agradável e que lhe permitissem espreitar de vez em quando o resto do mundo lá fora.
Nas palavras dele, eu comecei por ser uma voz que, do fundo do anfiteatro, se fazia ouvir frequentemente para questionar o que nos era dito. Já ele, sentado nas primeiras filas, aceitava sem contestar as opiniões dos formadores. Foi com o Luís que aprendi que quase tudo pode ser material criativo, que é mais valiosa a criação de um alquimista do que a de um joalheiro. Um dia, no fim de uma sessão acalorada, tocou-me no ombro, É muito importante aquilo de que falaste, disse-me sorridente. Até então nunca tinha reparado nele. Podemos apaixonar-nos por alguém à primeira vista, podemos também desejar ser amigos de alguém ao primeiro sorriso, mas só a passagem do tempo decide se o amor acontece.
Ia no comboio quando li o Luís pela primeira vez. Semanas antes, o formador de Escrita de Argumento havia proposto que escrevêssemos um tratamento para um filme a partir de uma notícia da Nova Gente: uma heroinómana, obrigada a prostituir-se para alimentar o vício, fora contaminada com o vírus da imunodeficiência humana. Recusei-me de imediato a escrever sobre aquilo a que chamei a Santíssima Trindade do Horror: droga, prostituição, sida, Que interesse pode ter uma história previsível?, atirei desdenhosa. Escrevi, pois, sobre o que me apeteceu e fiquei atrapalhada quando o Luís me deu a ler o projeto dele, confessando-me ter seguido a sugestão do formador. Com receio de que o meu não gosto pudesse ser demasiado notório, não quis ler à frente dele. No comboio, a caminho de Cascais, senti-me completamente avassalada pela Viagem para a Morte e desejei escrever de forma tão poderosa como o Luís escrevia.
A admiração intelectual não nos torna amigos de ninguém, ainda que possa gerar alguns equívocos. Eu tinha lido os regulamentos dos concursos do então Instituto Português de Cinema – o curso de Direito servia-me mais para estas coisas do que para o sustento – e pensava concorrer ao apoio financeiro para a escrita de argumento. Não queres apresentar também o teu projeto?, perguntei-lhe. Morávamos nos subúrbios, em casa dos pais, o Luís na linha de Sintra, eu na de Cascais, não tínhamos dinheiro, nome de família ou amigos influentes, mas sobrava-nos ingenuidade e determinação. Os nossos projetos foram apoiados, só que a produtora cinematográfica não fez os filmes e nunca nos pagou o que nos devia. Nada disso beliscou a amizade entre mim e o Luís, nem sequer o facto de nos termos apaixonado pelo caminho. Quando fiz vinte e nove anos, o Luís ofereceu-me uma pequena mala de viagem. Lá dentro, uma cópia da chave do T1 que ele arrendara na Rua José Estêvão e um bilhete, Estou à tua espera.
Casámo-nos dali a meses, num dia frio do início de dezembro. Vivemos juntos quinze anos. Não sei quando comecei a falar com o Luís como se pensasse em voz alta. Devo-lhe quase tudo: a redefinição da bondade, o desarmadilhar do meu passado, a escrita. Nunca me teria despedido do emprego de técnica de marketing em que definhava, se o Luís não me tivesse incentivado a fazê-lo, se não se tivesse oferecido para dividir comigo o seu ordenado de assistente universitário. Devo ao Luís a minha maneira de viver, que é o mesmo que dizer que lhe devo a minha vida.
Numa manhã de sábado, na cozinha da casa onde vivíamos, tínhamos acabado de tomar o pequeno-almoço, o Clude dormia debaixo da mesa, líamos o jornal, havia um raio de luz a bater nos mosaicos amarelos com estrelas brancas. De dentro de vidas quase perfeitas, numa manhã perfeita, perguntei calmamente, Já não estamos apaixonados um pelo outro, pois não? Acho que não, respondeu o Luís. E agora?, perguntei a medo. Continuamos, disse ele, mesmo separados, nunca nos perderemos um do outro, garantiu. Assim foi. Um psicólogo que consultei avisou-me, Têm de se afastar para fazer o luto. Os amigos e familiares mostraram-se céticos, Isso acabará logo que um de vocês se apaixone por outra pessoa. Isso sobreviveu. Sem o atrapalho da posse. Mais forte ainda. Indubitavelmente eterno.
O Luís ensina Matemática, mas estudou Física. Em tempos, explicou-me que a Teoria da Relatividade Geral determina que um corpo deforma o que o rodeia, alterando tanto mais as leis da Natureza à sua volta quanto maior for a sua massa. Posso não ter entendido bem ou estar a formular incorretamente o que ele me disse, mas tenho a certeza de que aquilo que me liga ao Luís e ele a mim é um gigante invisível que nos distorceu as leis da amizade e do amor. Uma distorção indescritivelmente prazerosa. Como aquela que acontece quando uma poltrona é moldada, dia após dia, pelo peso de um corpo, transformando-se no seu ninho.
(Crónica publicada na VISÃO 1380 de 15 de agosto)