Distribuí os doentes. Cada um ia fazer uma história clínica. Cinco alunos, cinco doentes. Combinamos encontrar-nos passadas duas horas, de forma a terem tempo de colher a história, fazer o exame físico, colocar e discutir as hipóteses de diagnóstico.
Os problemas das crianças eram variados. Os alunos eram também muito diferentes. O João tinha um ar calmo e doce, uma argolinha na orelha esquerda, uns caracóis soltos e teimosos sobre os olhos; o Joel, um rapaz de feições regulares, ar trocista, um pouco tenso quando inquirido, parecendo estar sempre à defesa, perfeccionista e muito competitivo; o Francisco era distraído, ar frágil e doce; a Guiomar tinha um olhar duro e avaliador, inteligente e reservada; a Maria, a “betinha “, com voz “enrolada”, saltos altos, unhas esmaltadas, carteira Chanel, telemóvel última geração, um ar de enfado pontuado por longos suspiros quando o João emitia as suas opiniões peculiares.
O Francisco iria examinar um bebé com diarreia crónica; o Joel, uma menina de três anos internada por suspeita de maus tratos; o João, uma menina de cinco anos com uma pneumonia; a Guiomar, um rapazinho que tinha perdido dois dedos da mão direita ao pegar num foguete que lhe estoirou na mão; a Maria, um adolescente com deficiência intelectual e epilepsia.
Enquanto colhiam a história eu entrava e saía discretamente da enfermaria, apontando mentalmente o comportamento de cada aluno. Todas as crianças tinham ao seu lado a mãe, excepto a menina de dois anos, que tinha uma ama. Achei graça ao João, que quando a menina que examinava começara a chorar, tirara do bolso da bata uns brinquedos pequeninos. O Francisco parecia perdido, a mãe da criança não se calava e ele não conseguia redirecionar-lhe o discurso. A senhora era alta e gorda, mamalhuda, cabelo tingido de loiro, roupas apertadas e decote generoso. O rapaz estava intimidado por aquela abundância despudorada e olhou para mim com uns olhos suplicantes, parecia pedir socorro. A Guiomar estava-me a surpreender. Por trás daquele ar resoluto, autoritário e frio, estava uma alma sensível e generosa. Conversava carinhosamente com a criança, e ajudava-a a treinar a escrita com a mão esquerda. A Maria estava com um ar de enfado e vi-a várias vezes revirar os olhos para cima como reação ao que a mãe do rapaz lhe dizia. Era uma senhora muito simples, empregada fabril de São João da Madeira, gaspeadeira de sapatos. O filho era, para além de deficiente, muito feiinho e com uma pele deplorável, cheia de acne. Imagino que não cheirassem lá muito bem e ri-me interiormente (mázinha…) de ser aquele o doente que calhara à betinha. O Joel, por fim. Parecia irritado por lhe ter sido atribuída uma criança “sem doença”. Fez algumas perguntas à ama da criança, mediu a cabeça da menina com uma fita métrica, pesou-a corretamente, auscultou-a, enfiou-lhe as mãos no abdómen e ao fim de pouco tempo, saiu da enfermaria e foi para uma outra sala escrever o seu relatório. A menina tinha três anos e já falava, mas ele não lhe dirigiu a palavra, apenas falou com a ama.
Reunimo-nos por fim numa sala para cada um me ler a sua história clinica. O João esquecera-se de inquirir a história familiar mas fazia uma óptima descrição do exame físico. A Maria tinha-se limitado ao essencial, mas nada esquecera da história clínica nem do exame físico. Conseguira descrever bem as crises epiléticas de vários tipos e nem se esquecera, no exame físico, de dizer que o doente tinha acne. Contudo, a história era impessoal e nada, mas nada, nos ajudava a visualizar aquele doente, se o não conhecêssemos.
O Francisco, no meio da sua atrapalhação com os atributos físicos da mãe da sua doente, esquecera-se de pesar a criança e de verificar os dados do boletim de saúde infantil.
A história da Guiomar sobressaía. Um português correto, fluido, observações pertinentes e pessoais, um bom resumo no final; nem a mais, nem a menos.
Deixei o Joel para o fim propositadamente. Estava taciturno, de vez em quando bufava, cabeça um pouco baixa, sentado com as pernas já direcionadas para a porta de saída….
– Podes ler a tua história clinica?
– Se é que se pode chamar a isto uma história clínica….Esta criança não devia estar aqui. Não tem nada… – respondeu rudemente.
– Importas-te de ler?- continuei, ignorando a provocação no tom de voz.
– “Sexo feminino, três anos de idade. Internada por apresentar lesões dérmicas de escabiose e picadas de pulgas, assim como infecção do couro cabeludo provavelmente causada por lesões de coceira. Sem outros problemas. Exame físico sem outras alterações para além das descritas. Pai incógnito. Mãe trabalha num bar de alterne. Criança aos cuidados de uma ama dia e noite desde que nasceu. Aguarda decisão do tribunal de menores”. Acabei – disse com um olhar desafiante.
– Muito bem. Para além de todas as alterações dérmicas que tão bem descreveste, como é esta criança? Fala? Consegue correr? É triste, alegre? Como brinca? E a ama, como é ela? Que te disse sobre a mãe da criança?
– Não sei. Não perguntei. Não achei ser importante. Eu não estou a tirar o curso de Assistente Social…
Decidi nada responder. Fez-se um silêncio pesado na sala. Todos se sentiram embaraçados, provavelmente por diferentes razões. Após respirar fundo umas tantas vezes disse, controlando o tom de voz:
– Aquela criança é um ser humano completamente dependente. Somos responsáveis por velar pelo seu crescimento físico e emocional até à idade adulta. Para o fazermos bem, temos que conhecer a sua família, a sua história pessoal, as suas capacidades, as suas deficiências. Só assim a poderemos ajudar. Isso é ser médico. Vais voltar à enfermaria, falar com a ama, conhecer a história daquela família e interagir com a criança de forma a ma poderes descrever na nossa próxima aula.
Levantou-se de forma brusca, olhos no chão, caderno na mão, estetoscópio ao pescoço e seguiu para a enfermaria.
Os colegas dele arrumaram o estetoscópio e os cadernos, despiram e dobraram as batas e, um pouco amedrontados, despediram-se de mim.
Aquilo tinha-me incomodado, não estava habituada a ter conflitos com os alunos. Mas pensei que provavelmente, por detrás da arrogância do Joel, devia haver alguma fragilidade, algum medo de ir mais fundo no conhecimento do outro, de ir mais fundo no seu próprio conhecimento. Decidi aguardar calmamente pela sua nova história clínica.
A criança, entretanto, com a ajuda de enfermeiras, médicos, auxiliares e educadoras de infância, ao fim de uma semana já tinha muito melhor aspecto. Tinham-lhe aparado o cabelo e todos os dias alguém lhe trazia uma pecinha de roupa bonita para a enfeitar. Andava de colo em colo nos tempos livres das enfermeiras e auxiliares e começamos a vê-la sorrir finalmente. Paralelamente, a Assistente Social trabalhava com o Tribunal de menores de forma a garantir que, quando tivesse alta hospitalar, fosse colocada num local seguro.
Passou uma semana. Novamente dia de aula prática com a minha turma. Aguardava com curiosidade e alguma apreensão a história clínica do Joel.
Depois de se acomodarem nas cadeiras dispostas em círculo, pedi a Joel para ler a sua história.
– A história clínica foi colhida através da ama da criança. Não tive acesso ao boletim de saúde infantil nem ao boletim de vacinas. A Luana, atualmente com 3 anos de idade, nasceu após uma gravidez de termo não vigiada. O parto foi eutócico, no Hospital de Vila Nova de Gaia e, segundo a avó, não houve problemas no período neonatal. Pesava dois quilos e quinhentas gramas. Teve alta hospitalar ao fim de dois dias. A mãe não vive com o pai da Luana nem nunca viveu. A gravidez não foi desejada. Após nascer, a Luana foi imediatamente entregue aos cuidados de uma ama, que recebe 250 euros mensais. Esta senhora vive com um companheiro, tem cinquenta e seis anos e tem mais três outras crianças ao seu cuidado. Uma de 6 anos, um menino de quatro e um lactente de cinco meses. A casa tem dois quartos e as crianças dormem todas no mesmo. A casa de banho não tem banheira e é no exterior, anexa à casa. Segundo a ama, a Luana começou a andar por volta dos 16 meses e a falar com dois anos. Isto não é seguro pois por várias vezes a ama confundiu a Luana com outra criança ao seu cuidado. Só a menina de seis anos frequenta uma escola. Os outros três estão exclusivamente aos cuidados da ama. Brincam no quarto, no pequeno espaço que não é ocupado pelas camas ou, se não chove, no pátio , partilhado com outras casas. Nesse pátio há cães, gatos e um galinheiro. Há também um poço, e um tanque de cimento. A avó da Luana também vive nessa “ilha” mas nunca quis tomar conta da neta, pois tem a seu cargo três crianças de um filho toxicodependente.
Eu estava admirada com toda aquela informação detalhada e perguntei como a tinha obtido.
– Fui a casa da avó recolher informações. Recusou-se a falar, pois está com medo que a Segurança Social lhe entregue a criança. Disse-me que a Luana está muito bem entregue à ama e que não entende o porquê deste internamento.
– Muito bem. Podes continuar.
– A mãe da Luana tem vinte e três anos e está agora a viver com um companheiro. Segundo a avó ele não trabalha e a mãe da Luana continua a prostituir-se. Já tem um outro filho de um ano que vive com o casal. Consegui falar com ela ao telefone. Recusou-se a vir ao hospital. Não quer dar a filha para adoção mas também não quer ficar com ela. A ama diz que ela só vai ver a filha uma vez por mês, quando lhe paga a mensalidade.
– E qual é o plano para esta criança? Quanto tempo mais achas que deve ficar internada?
– Do ponto de vista físico a Luana já está bem. Mas a Assistente Social ainda não encontrou uma casa de acolhimento da Segurança social para a colocar. Parece que não é fácil . Há muitas outras crianças na mesma situação, que ficam até aos 18 anos em casas de acolhimento.
– E o que achas que seria melhor para esta criança?
– Sem dúvida que seria encontrar uma família que a adotasse, mas não sei se será possível. Vai depender da decisão do tribunal.
– E a Luana, que achas dela?
– É uma menina que tem um atraso no desenvolvimento da linguagem e é muito medrosa, mas penso que, se for colocada num ambiente estimulante e afetuoso, vai crescer muito bem.
A sala estava silenciosa. Sentados em círculo, ligeiramente inclinados para frente, todos escutavam atentamente a história. Pensei naquele momento que só faltava uma lareira.
Dei os parabéns ao Joel por ter ido mais além do que lhe era exigido. Ele tinha mostrado a todos o que era ser médico. Tinha transformado a história de uma doença, na história de uma criança com uma doença e depois, conseguira ainda, contá-la de uma forma tão humana que a todos nos parecera ter ouvido: “Era uma vez uma menina…”
Lembrei-me que em Cabo Verde, se pede aos contadores de estórias:
– “Estória , estória!”
E no fim se agradece dizendo:
– Fartura do Céu, Ámen!”
(Todas as histórias que envolvem doentes são ficção, baseada em casos reais e na prática clínica da autora)