No último mês do ano de 2011, participei num projeto que envolvia uma orquestra. Várias orquestras, aliás. Foi uma superprodução, a maior em que já participei, a maior, mais complexa, mais ambiciosa operação que eu já vi. Constava na altura que talvez fosse a empreitada deste género mais ambiciosa alguma vez produzida em Portugal. Seria tudo filmado, gravado, executado ao vivo sem cortes. Se a lembrança não me falha, penso a esta distância, salvo a inflação com que o tempo costuma insuflar a memória, com quase toda a certeza, que se trataria de duas centenas de músicos. Os ensaios tinham lugar num enorme armazém abandonado, uma extinta fábrica na zona de Alcântara, na cidade de Lisboa. Era um espaço francamente amplo, capaz de albergar 200 músicos. Violinos, fagotes, cantores líricos, bombos populares, metais e sopros de toda a sorte, coros de gospel, bombardinos, tubas, guitarras elétricas, uma roda de choro e samba. Eu chegava cedo aos ensaios, gosto de chegar cedo, prefiro esperar a fazer esperar. Quase toda a gente fazia o mesmo, outra alternativa não seria possível, era muita gente, tinha de ser assim. Como em todas as situações que envolvem instrumentistas, qualquer que seja a disciplina musical, as pessoas preenchem o embaraço do vazio tocando displicentemente o seu instrumento. Somos todos assim. Com uma viola ao colo, eu começo a dedilhar ao acaso, preencho o vazio e o silêncio com alguns acordes nenhuns.
Ali era assim: duzentas almas de deus a afinar, ajustar bocais, a passar cera em cordas, a ajustar arcos, a esticar peles de tambores, a tocar por tocar. Era com bastante interesse que eu assistia àqueles pré-ensaios. O caos, a desordem, a cacofonia que a soma aleatória e desorganizada que 200 instrumentos tocados ao acaso produz é de enlouquecer. Ferramentas humanas criadas para induzir beleza e harmonia, na maioria dos casos dignos de registo histórico, quando desapegadas, desgarradas umas das outras, produzem inadvertidamente, involuntariamente, o seu total oposto. A música do trânsito do nó de Bessa Leite resulta mais agradável. E nisto chegava o maestro que, naturalmente, unanimemente, impunha a sua autoridade. O silêncio que se fazia sentir era automático. Tomava o seu posto de alta vigia e podia-se assistir, de imediato, ao milagre da organização humana, da autoridade, da hierarquia, da diversidade dos papéis, da interdependência, do respeito pelo todo, enfim, da harmonia em sociedade.
Pelo agitar da batuta, a autoridade vinha por ali abaixo em cascata. Os primeiros violinos agiam em reação ao maestro, os segundos e terceiros violinos agiam em reação ao primeiro violino, a coisa vinha por ali abaixo em árvore. A autoridade, naquele cenário em particular, aceite e inconteste, era a única forma de o todo resultar. Os duzentos músicos nem sequer se viam uns aos outros, não saberiam como começar a tocar a peça, sequer.
Eu, que nada entendo de música assim desta com “M” grande, sempre fui inclinado a subestimar o papel do maestro, de cada vez que uma dessas figuras excêntricas de cabelo grande e casaca aparecia na televisão. E também sempre fui conduzido a achar, pelo senso comum que me rodeia, que a vida humana se pode harmonizar numa autogestão anárquica e individualista. É uma ideia ingénua e adolescente que definitivamente descartei desde essa altura. As grandes obras humanas resultam da organização, da autoridade, da hierarquia. Hoje sei, já não me iludo.
É verão, está calor, o farnel e as toalhas não rastejam por si só para dentro do cesto. Os ombros das crianças não se besuntam de creme sozinhos. Uma ida à praia só é possível porque a minha mulher manda, lá de cima, do seu posto de alta vigia, e os restantes membros da família, pontinha da língua de fora a tentar acertar na nota do seu violino, obedecem sem mas nem meio mas.
(Crónica publicada na VISÃO 1378 de 1 de agosto)