É uma recorrência histórica, para cada avanço civilizacional existe a reação. Há sempre reacionários. O conservadorismo esteve sempre do lado da calcificação das instituições, contra as mudanças sociais e contra a construção de uma sociedade mais airosa, inclusiva e igualitária.
Hoje, no entanto, parece ser lugar-comum dizer que a culpa da reação está do lado de quem luta pela igualdade. Na atualidade, os defensores dos Direitos Humanos têm as costas largas o suficiente para carregarem o reacendimento dos tiques protofascistas da velha Europa, para justificarem a boçalidade dos novos populistas e para legitimarem alguns “excessos” dos falsos-moderados. É o exagero dos progressistas que obriga esta gente-de-bem a sujar as mãos nestes debates. Eles que estavam tão serenos no sono de beleza do fim da história…
A culpa é mesmo destes exagerados que lutam contra o racismo, a homofobia e o sexismo e que teimam em incomodar os privilegiados nos seus condomínios. É que até se pode conceber a ideia de uma sociedade de aparências em que as pessoas convivem cordialmente, mas já começa a ser abusivo ter de partilhar o espaço público com esta gente reivindicativa, que nunca está satisfeita com nada e que ainda por cima exige visibilidade e representatividade política.
Sobretudo num país que tem uma longa tradição em sorrir para a fotografia. Em que o povo é sereno. Cada um faz o que quer da porta para dentro. E entre marido e mulher não se mete a colher. Um país em que toda a gente até tem um amigo que é, e gosta de repetir que nós é que inventámos a mestiçagem num grande e épico encontro de culturas… Enfim. Porque raio vêm agora estes esganiçados transformar pessoas moderadas em votantes de Ventura?
Ainda na semana passada, por exemplo, este feminismo desabrido que nos ameaça obrigou mais de oitenta sensatos deputados do PSD e do CDS a solicitarem uma tomada de posição do Tribunal Constitucional sobre uma eventual promoção “ideologia de género” nas escolas, estimulada pelo Ministério da Educação. É que uma coisa é dizer que as mulheres e os homens merecem ter direitos iguais, outra bem diferente é ensinar às criancinhas que cada pessoa tem o direito de se definir identitariamente enquanto homem, mulher ou outro(s), numa lógica não binária e não coerciva de entender o género. Isso já é propaganda e apologia à desestruturação do mundo como o conhecemos (no nosso condomínio).
E são estes excessos da esquerda moderninha que obrigam estes pais de família portugueses a recorrer ao chavão favorito da turma de Bolsonaro para atacar a luta feminista no Brasil. “Ideologia de género” é a expressão que transforma a ideia (sustentada pelas Ciências Sociais) de que as categorias e os papéis de género são construções culturais e não determinações biológicas, em mera propaganda do “marxismo cultural” a combater. Tem sido muito útil para alavancar a campanha Escola Sem Partido da ministra Damares, abrindo espaço para a doutrinação evangélica, no meio de muitos disparates perigosos e boçalidade q.b.
Os privilegiados tentam a todo o custo marcar os limites até aos quais permitem que haja mudança social. Autorizam a conquista de direitos até certo ponto, mas não tardam em traçar a linha a partir da qual já consideram abusivas as conquistas e as barreiras que estes “novos” atores não podem ultrapassar.
É que, afinal, brincar ao liberalismo democrático só tem piada enquanto não temos de debater com negros e ciganos no Parlamento, enquanto a ideia de normalidade for reservada a homens e mulheres cis, enquanto os privilégios exclusivos do homem-branco-hetero-de-blazer-e-gravata não forem ameaçados. E até lá, põe-se tudo na conta destes “exageros”.
Minha gente, a culpa de os reacionários serem reacionários é dos reacionários. E já que vivemos num tempo em que já ninguém tem vergonha de ser abertamente preconceituoso ou boçal, assumam-se os posicionamentos e veremos: o bronco é mesmo o novo moderado.
(Crónica publicada na VISÃO 1377 de 25 de julho)