A morte do ator Rugter Hauer aos 73 anos fez-me voltar aquele que é talvez o filme da minha vida e de muitos que estão agora a ler esta crónica. Assisti ao Blade Runner pela primeira vez numa sala de cinema na década de 80. O impacto foi tão forte que repeti a dose na semana seguinte, esperei ansiosamente a saída em formato VHS, e depois em DVD. E nunca mais deixei de ver o filme. Pelo menos uma vez por ano ligo o projetor e mergulho naquele universo intrigante e frio, como quem revisita o seu museu preferido.
As aventuras de Deckard, o polícia reformado cuja missão é destruir seis androides da série Nexus 6 e se apaixona por Rachel, a mais próxima de uma versão humana, nunca mais me saiu da cabeça. Foi a primeira longa-metragem de um dos realizadores mais brilhantes de sempre, Ridley Scott e é baseado no livro do Philip K. Dick, intitulado Será que os Androides sonham com Ovelhas Eléctricas? O livro foi publicado na década de 60 e o autor morreu poucas semanas antes da estreia do filme. Apanhei um exemplar numa tarde de caça inspirada e sortuda na Feira do Livro deste ano. O Paul Auster diz que os são os livros que nos encontram, e tem razão.
Há qualquer coisa de profundamente mágico em ler um livro do qual já vimos a versão cinematográfica. Às vezes é catastrófico, quando a versão em imagem é incomparavelmente mais pobre. Outras, é uma maravilha. Foi o caso. Philip K. Dick faz-nos voar no seu hovercar por um universo escuro e apocalíptico carregado de referências familiares, enquanto persegue as presas fabricadas pela Tyrell Corporation. Deckard é um herói contrariado com a sua missão, que vai cumprindo com grande eficácia, até se apaixonar por Rachel, a mais perfeita e doce criatura, concebida para agradar, uma revisitação moderna de uma cortesã do século XVIII com uma gueixa do Japão e o coração suave e a fragilidade de uma Marilyn Monroe.
Se no filme a trama é algo complexa e opaca, tudo se adensa nesta maravilhosa e inquietante obra-prima de ficção científica na qual o autor abraça as possibilidades aterradoras da evolução da tecnologia para nos obrigar a pensar em duas questões fundamentais para ao sobrevivência da nossa espécie: a mortalidade e a empatia. No livro, Deckard é casado e volta ao lar depois de ter aniquilado todos os Nexus 6, exceto Rachel, com quem dormiu e que deixou regressar a Seattle, aliviando a sua consciência com a ideia de que ela só teria mais dois anos de vida antes de se desligar, enquanto ele, com mais de 50, já vivera muitos mais anos do que ela. No filme, o herói imortalizado por Harrison Ford é um lobo solitário que foge com a sua namoradinha improvável, sem saber quando é que ela se desliga, abraçando a sua paixão, sabendo que um dia tudo vai acaba, e ainda assim, feliz pela sua escolha. O livro é mais moralista, o filme é mais poético. Mas o que acontece a Deckard é a capitulação perante um amor inesperado: incapaz de a matar, ou a deixa partir, ou fica com ela para sempre, sabendo que isso não existe. Como dizia o grande poeta Vinicius de Moraes, o amor é eterno enquanto dura.
A outra questão levantada por esta obra magnifica é a da empatia. O fabricante conseguiu replicar quase tudo na estrutura dos seus androides, exceto a empatia. Eles apaixonam-se, riem-se, sabem socializar, são simpáticos, profundos, cultos e sedutores, mas não conseguem sentir o sofrimento de outras criaturas. Mesmo na cena final, uma das mais belas de sempre da história do cinema, quando Roy Batty, o líder dos androides, sucumbe às mãos de Deckard, lamentando que todos os momentos ficarão perdidos no tempo como lágrimas na chuva, ele chora também pela sua condição. O ator explicou numa entrevista que pediu a Ridley Scott que o deixasse construir o personagem de forma a torná-lo o mais humano possível. Tal como Rachel tem memórias fabricadas que a fazem acreditar que viveu uma infância normal e teve uma família, Roy também lamenta as suas limitações no momento da sua morte. E quando se desliga, uma pomba branca parece elevar o seu espírito para outro patamar. É a elevação de uma tomada de consciência possível. Morre de pé, com a dignidade de um herói que abraça o anjo da morte.
Uma das questões na ordem no dia no que concerne a evolução do comportamento humano é a da empatia. Será que o conhecimento, que nunca esteve tão acessível nem nunca foi tão massificado, nos aproxima ou nos afasta dos outros? De que nos serve poder aprender um pouco de tudo, se estamos cada vez mais isolados entre os da nossa própria espécie? As crianças que passam mais tempo em frente a um ecrã vão desenvolver menos capacidades empáticas do que as que brincam umas com as outras. Deckard abraça a sua paixão, Roy, mesmo sendo androide, abraça a morte. E nós, quem é que abraçamos todos os dias? Será que damos todos os abraços que podemos dar ou nos esquecemos deles? Está cientificamente provado que um abraço com a duração de 20 segundos liberta no organismo uma dose de oxitocina cujo efeito se prolonga durante 24 horas.
O mundo tal como está a evoluir (ou a involuir, usando um verbo que aprendi a assistir a episódios de Pokémons com o meu filho quando era pequeno), irá acentuar cada vez mais os traços narcísicos no ser humano que são uma paixão desmesurada pela sua imagem e pelo seu ego e a incapacidade de sentir empatia, entre outras. Narcisistas são como eucaliptos: matam tudo em seu redor quando crescem. Vale a pena parar e pensar para onde estamos a caminhar, porque se não treinarmos a empatia nas gerações futuras, todos os momentos ficarão perdidos no tempo, como lágrimas na chuva.