Nos últimos dias o caso da bébé Matilde, tem estado na prioridade das notícias. Desde logo, porque parece haver solução para o seu problema genético e a sua vida, com qualidade, poderá ser preservada e a Matilde crescer como outra criança qualquer.
Depois, pelo exemplo de perseverança e capacidade de luta dos seus pais, que não desistiram de pugnar pela vida da sua filha e conseguiram reunir os recursos necessários para comprar o fármaco milagroso. A seguir, o facto, impressionante, de após 15 dias de divulgação do seu caso, os portugueses, num gesto impar de solidariedade, conseguirem mobilizar os dois milhões de euros necessários. Por fim, a intervenção do SNS, que parece vir a assumir todos os custos inerentes ao tratamento da Matilde.
Gostaria, neste caso, e de forma desapaixonada, de destacar o papel do SNS como garante da vida e da qualidade de vida dos cidadãos portugueses. E no caso da Matilde funcionaram dois princípios constitucionais essenciais: a universalidade (todos os portugueses têm acesso a cuidados de saúde, em função das suas necessidades e não em função dos seus rendimentos) e a generalidade das prestações (em que o principio da efetividade sobreleva a eficiência ou a conveniência económica). Ou seja, se há um doente para o qual há solução terapêutica, no país ou no estrangeiro, o SNS está lá, responde, independentemente dos custos associados.
É assim que ao longo da vigência de quase 40 anos de SNS, uma longa lista de doentes portugueses têm sido gratuitamente tratados com sucesso no estrangeiro (Espanha, França, Alemanha, Reino Unido,EUA,etc.) ou têm beneficiado de terapêuticas inovadoras ainda não aprovadas pelo INFARMED, através das AUE (Autorizações para Utilização Excecional). Em ambas as situações o papel dos médicos tem sido fulcral, quer na identificação das melhores práticas internacionais, quer na identificação de novas terapêuticas, em princípio eficazes nos casos clínicos com que se deparam. O que prova a sua dedicação aos doentes e a sua capacidade de estudo e de atualização científica e técnica.
Para as deslocações ao estrangeiro, o processo exige uma propositura devidamente fundamentada clinicamente pelo médico do SNS que acompanha o doente, uma avaliação por uma equipa médica sob a tutela da Direção – Geral de Saúde e uma decisão técnica final. Como gestor hospitalar, autorizei variadíssimas vezes o pagamento de despesas de viagem a doentes, e por vezes também a acompanhantes, com o apoio logístico, incluindo a tradução, no pais de destino, através do precioso auxílio das nossas embaixadas ou serviços consulares.
No caso de fármacos inovadores, o processo passa pela Comissão de Farmácia e Terapêutica do hospital, após solicitação do médico assistente do doente e transita para o INFARMED, que procede à avaliação final da pertinência e adequação do novo fármaco naquele caso concreto. E, após deferimento, autoriza o laboratório fabricante a importar o produto, por vezes em situação de emergência, destinado exclusivamente àquele doente.
Como se percebe, nem sempre o que se pede é objeto de satisfação, seja porque o processo não está suficientemente instruído, seja porque não há acervo documental robusto sobre benefícios e riscos para o doente, seja ainda porque se considera que naquele caso concreto, a deslocação ou o tratamento não acrescentarão valor relevante para a vida e bem-estar do doente. Todas estas questões podem ser controversas e criar uma querela científica e ética infindável e muitas vezes dramática. Em Portugal, felizmente, isso não tem acontecido e esperemos que também neste caso as coisas corram bem e sem sobressaltos.
Gostava de salientar que, em todas estas autorizações, a questão dos custos nunca se coloca, concentrando-se todo o processo nas razões clinicas e nos benefícios e riscos que lhe estão associados. O primado do doente e o seu bem-estar são, nestes casos, o centro exclusivo das preocupações dos médicos e das administrações. É claro que, como acima se descreve, as avaliações destes casos são muito rigorosas e, por vezes, o que se considera a melhor prática internacional, já se faz em Portugal com níveis de sucesso similares, ou o tal medicamento inovador, afinal não é tão inovador como isso, ou tem contraindicações ponderosas, ou tem um valor acrescentado menor e que não justifica, aqui, sim, custos tão elevados. Este processo torna-se, por vezes, moroso e excessivamente burocratizado, o que exaspera doentes e famílias e pode confundir-se com desleixo, desumanidade ou racionamento.
É este o SNS que temos: universal (não exclui doentes ou doenças mais complexas) e extremamente generoso, no afã de dar a todos os portugueses o melhor tratamento possível, seja aonde for que ele seja prestado. E sem custos para os beneficiários. Os custos destas prestações e desta generosidade são suportados por todos nós, portugueses, que optamos por ter, em boa hora, um serviço público de saúde, democrático na sua matriz assistencial e solidário no seu financiamento – pagamos todos de acordo com os nossos rendimentos, para tratar da saúde dos que estão doentes.
Apenas uma nota final: os preços astronómicos dos medicamentos inovadores, principalmente no caso de doenças raras, justificam-se, em parte, pelo nicho de mercado a que se destinam. Os custos de investigação e desenvolvimento não justificam tudo e espera-se que a indústria não utilize, neste caso, a chantagem ética para exigir valores insustentáveis.