Como é sabido, na sequência do número terrível de homicídios de mulheres em contexto de violência doméstica no início do ano, alguns partidos políticos responderam de imediato (e com pouca reflexão) com a entrega de cerca de 16 projetos de lei sobre a matéria e, também, sobre crimes sexuais.
Estes diplomas estão a ser discutidos na especialidade, num Grupo de Trabalho (GT), no qual represento o meu grupo parlamentar, a pouco mais de um mês do fim da legislatura.
Há vários mitos em torno desta matéria denunciados pelo GPPS, mitos esses claramente expostos na audição do professor Pedro Caeiro e no parecer que enviou para o GT.
Em 2015, fizemos uma reforma penal dando concretização à Convenção de Istambul. A legislação penal tem de ter estabilidade, não pode ficar nas mãos de maiorias conjunturais, não pode ser alterada por impulso, antes exige uma mudança da realidade social que justifique modificações profundas da lei (independentemente de poder fazer sentido proceder a alterações cirúrgicas – o GPPS apresentou um projeto de lei sobre coação sexual e violação).
Os projetos de lei que criticamos não provam qualquer aumento do tipo da criminalidade de que estamos a falar. O alargamento do tipo penal violência doméstica tem por consequência mais participações, por exemplo, e a desocultação do fenómeno é ignorada. Ainda que se aceite, para efeitos de argumentação, um aumento deste tipo de criminalidade, fica por provar a eficácia do tipo de intervenção legislativa pretendida por quem quer elevar as molduras penais, por quem quer a prisão efetiva, assumindo nos seus preâmbulos que estão a responder a “perceções” do público e às “expectativas” das vítimas.
Não se legisla para responder a decisões controversas – devidamente citadas – e a Constituição veda a restrição de direitos em nome do “envio de sinais” ou “mensagens” para a sociedade, como tão bem explica Pedro Caeiro.
Não há qualquer estudo sério que demonstre que os tribunais estão generalizadamente a aplicar “mal” a lei, nomeadamente quando suspendem a pena de prisão aplicada a um crime que pode constituir uma conduta gravíssima ou um conflito interpessoal isolado sem grande relevância. De resto, como explica a professora Inês Ferreira Leite, no seu parecer enviado ao GT, “neste momento, começa a ganhar espaço uma tendência jurisprudencial fundamental, e que corresponde, na minha opinião, ao bom entendimento sobre a violência doméstica: a de que há concurso efetivo entre este crime e todos os outros mais graves realizados durante o período de violência. Há um risco de quebrar este avanço doutrinário e jurisprudencial ao aumentar a pena”.
Nos vários projetos de lei há uma preferência pela pena de prisão efetiva, restringe-se ou elimina-se a possibilidade de substituir a pena de prisão efetiva por uma pena de suspensão da execução da pena de prisão, veda-se a aplicação da suspensão provisória do processo (a pedido da vítima) e ainda se obriga a vítima a depor. Nestes últimos dois casos, os direitos das vítimas são violentamente atropelados e é caso para se falar em violência de Estado.
Tudo isto assenta, como explica o professor Pedro Caeiro, num sentimento segundo o qual em Portugal se prende pouco. Vale a pena ler o parecer que nos demonstra o problema crónico que temos para resolver, porque a dimensão da privação da liberdade em Portugal, no contexto do Conselho da Europa, é uma vergonha nacional. Em Portugal prende-se muito e por muito tempo. Ora, se o atual Direito Penal português é hiperpunitivo, qualquer aumento de penas tem de ser fundamentado nas funções de prevenção geral e especial do Direito Penal e não em meras “perceções”. É que ainda ninguém demonstrou que aumentar penas diminui a prática destes crimes.
Acabo com quatro convicções: 1) a lei pode, claro, ser sempre melhorada; 2) é errada a perceção de que as mulheres são vítimas de crimes sexuais e do crime de violência doméstica porque a lei é má; 3) a persecução do desafio de combater a morte de mulheres e proteger a sua liberdade sexual faz-se sobretudo antes da punição, antes da discussão acerca de mais e mais anos de prisão (qual é o limite?); 4) em Portugal prende-se muito e por muito tempo, pelo que não se pode propor o aumento de penas com base em “perceções” ou em “expectativas”.