Nunca conheci até à data um único ser humano que não tivesse sido violentamente atacado pelo Cupido. Todos os homens e mulheres a quem perguntei quantas vezes já se tinham apaixonado perdidamente, me responderam, claro que sim, uma, não, talvez duas vezes. E ficaram juntos? Esta é a pergunta que faço sempre, imediatamente a seguir, para não perder a boleia da sinceridade que é comum apanhar nas primeiras conversas. E quase sempre a resposta é não. A estas paixões perdidas que as pessoas nunca esquecem, gosto de lhes chamar, como canta a sábia Rita Lee, um caso sério.
Também eu já fui dada a achaques de amor súbitos e destruidores que nos deixam a palma das mãos mais secas do que as de um trabalhador de minas no Brasil fotografado por Sebastião Salgado, que nos tiram a fome, nos roubam o sono e não raro a alegria de viver. A primeira vez que o Cupido fez das suas, senti-me possuída por essa febre triste e castradora que reduz um ser humano a um décimo das suas capacidades. Tinha apenas oito anos, o meu alvo era um colega da turma da sala ao lado da antiga 3ª classe, num tempo em que o mapa de Portugal ainda era ultramarino e o retrato do Professor Marcelo Caetano nos espiava por detrás dos seus óculos de massa iguais aos do meu pai. O rapaz em questão era dono de uma melancolia endémica e de um belo par de olhos azuis, mas não me dava conversa, portanto aquilo que acreditei ser a minha paixão, nasceu do equívoco mais comum a este tipo de patologia amorosa: a idealização voluntária do ser amado que nos faz imaginar um admirável mundo novo que se projeta no nosso coração como um sonho realista mas que, em bom rigor, só existe na nossa cabeça. O disparate durou um ano, durante o qual, se bem me lembro, mal troquei uma palavra com o dito jovem. Agora sei que naquela idade estava apenas a ensaiar o coração para o futuro, com a mesma candura com que aprendia as diferentes conjugações verbais. Já não me lembro dele, mas nunca esquecerei o que senti por ele.
Pouco tempo depois, após sucessivas infeções na garganta, tive febre reumática que me provocou um sopro no coração. A doença obrigou-me a tomar penicilina durante uma década e a três anos de repouso: não podia correr, nem brincar, nem andar de baloiço ou de escorrega, não podia participar nas aulas de ginástica e no Verão não podia dar mergulhos à golfinho, nem fazer rodas na praia como as outras meninas. Estes anos de recolhimento tiveram dois efeitos em mim: passei a viver com o coração enfiado nos livros e a cabeça nas nuvens, alinhando poemas e cartas de amor para não sentir que estava a ver a vida passar, e aprendi a viver no futuro. Lembro-me de ver as outras crianças a brincar no recreio e de pensar em tudo o que iria fazer quando me pudesse mexer. E foi assim que me vi dentro de aviões a passear pelo mundo, que percorri as ruas de Londres e as igrejas em Florença, que visitei Nova Iorque e a Califórnia, e fiz tudo isso nos anos seguintes.
A analogia do futuro projetado é talvez a que melhor serve a minha perceção da longevidade de uma grande paixão. Quando vamos para fora de pé com alguém que nos deu a volta à cabeça e a outras coisas, é a ideia de um futuro a dois que faz com que o fogo ardente se transforme num sistema de aquecimento permanente para a alma. Se for só atração física, o prazer, ao consumá-la, irá consumi-la. Se for só um entusiasmo, a passagem do tempo irá apagá-la. Se for um impulso num momento de carência, a abundância irá torná-la irrelevante. Mas se reunir desejo físico, emoção profunda, admiração intelectual, valores irmãos e um conjunto de interesses em comum, o caso pode tornar-se muito sério. Hoje em dia acredito que um caso sério pode ser deixar marcas muito mais profundas do que uma paixão tórrida e avassaladora que acaba derrotada pela realidade. É quando idealizamos a construção de um futuro que a paixão cresce como uma casa. No entanto, se for intensa e violenta, se as circunstâncias não estiverem a nosso favor e os ventos contrários da vida soprarem mais forte, o resultado pode ser uma labiríntica e terrível torre de Babel, com risco de um naufrágio para o coração.
Um dos grandes enigmas de um caso sério é nunca sabermos quando acaba. Às vezes pensamos que é a última vez que abraçamos o outro e ele reaparece sem avisar, qual Jasper, o gato impertinente que tanto chateou a menina Alice que caiu no poço do desconhecido levada por um coelho apressado. Outras vezes, o nosso amor atravessa o portão a dizer até já e nunca mais volta. E ficamos em stand-by, contando as horas e dias, a ver o que acontece. Sonhamos com um sinal, uma mensagem, fazemos sinais de fumo, acordamos e olhamos para o telefone à espera de um milagre que não acontece, até que a erosão do tempo acaba por apagar a esperança.
Não raro, anos depois, o nosso antigo amor telefona, convida-nos para jantar, está mais velho, mas com o mesmo sorriso que nos levou ao Nirvana, e apresenta uma elaborada e sincera tese de defesa para o seu desaparecimento. Não raro, o nosso amor antigo pede desculpa, agarra-nos as mãos e percebemos que também sofreu a perda de tudo o que não construímos juntos. Só que, entretanto, o tempo passou e o tempo nunca espera por ninguém.
Life is what happens while you’re busy making other plans, disse John Lennon, que morreu sem tempo para se despedir da vida à porta de casa em West Side. Sempre que vou a Nova Iorque, visito a pedra que assinala a sua morte em Central Park e relembro o meu coração que a vida é curta e absurda e que o maior desperdício é perder tempo com quem não perde tempo connosco.
Os casos sérios, afinal pouco mais servem do que os escritores escreverem livros, ou crónicas como esta. E fica nas palavras o que se perdeu na espuma dos dias, e fica nos livros o que se nos escapou na vida. Roberto Carlos, outro génio da música popular brasileira, também tem algo a dizer sobre isto. É só ouvir um dos seus maiores sucessos, Outra vez.