Quase que dava para saltar dum prédio até ao outro (não dava). A luz que vinha da janela que ficava em frente à da cozinha do Gomes dos Recursos Humanos apagava-se sempre à mesma hora: 22h. Era metódico, cíclico, o acontecimento ocorria ininterruptamente desde que o Gomes dos Recursos nele atentou. Os colegas dos Recursos Humanos da empresa de transportes onde o Gomes empregava o melhor dos seus talentos, do seu tempo, da sua saúde, da sua vida, tinham-no por distraído, alheado, despegado do mundo. Mas o Gomes dos Recursos Humanos era tudo menos isso tudo. Foi-se acomodando, no decorrer da sua discreta existência, ao conforto banal que essa imagem, junto dos outros, lhe oferecia. Mas algures, dentro do emaranhado intransponível que compunha a teia de neurónios e células cerebrais do Gomes dos Recursos Humanos, morava uma mente viva, desperta, que reparava em tudo. Reparava nas bolinhas de cuspe que assomavam aos cantos da boca do chefe Moreira de cada vez que a prosa deste se alongava. A mente do Gomes dos Recursos funcionava assim: se a prosa era extensa, com certeza que seria de alta importância atentar no seu conteúdo, mormente por se tratar do recado de um chefe, mas a mente do Gomes apenas relevava as bolas de cuspe branco dos cantos da boca do emissário de tão provavelmente pertinente mensagem, que nisto se perdia.
O Gomes reparava na marca das louças dos urinóis, por exemplo. Sabia pelo menos três: Roca, Valadares e Sanindusa. Depois levava a cabo inquéritos dentro do departamento e pasmava-se com os resultados. Ninguém sabia dizer uma, sequer. E é por isso que reparou que a luz que vinha da janela que ficava mesmo em frente à da sua cozinha (falamos dum nono andar) se apagava sempre à mesma hora. Não se conseguia ver para o interior, apesar de parecer que até dava para saltar lá para dentro, caso tão pontual inquilino abrisse a dita cuja. O Gomes gostava de imaginar que se tratava de uma inquilina. Apreciava a rotineira pontualidade, tratava-se decerto de uma pessoa como deve ser, com horas, com zelo. Uma mulher cuja beleza escaparia ao vulgo, mas não ao seu olhar criterioso. Uma mulher que vivia sozinha, que por aquela hora estaria provavelmente a mudar a cama do gato. O Gomes havia iniciado há mais de meio ano uma conversa luminosa: pelas 21h59, diariamente e sem falhas, apagava e reacendia a luz. Às 22h, a luz da janela de lá apagava-se. Era um diálogo diário, reconfortante. O Gomes não duvidava de que era recíproco. Gato e dona já se teriam habituado a esse costume vespertino. Gostava de entrar, por via da imaginação, naquele apartamento. As estantes, os livros arrumados, os mesmos que ele próprio lera em criança e dos quais não se desfizera nunca: O Diário Secreto de Adrian Mole aos 13 anos e 3/4, O Mundo de Sofia, Os Filhos da Droga. O tapete felpudo cor-de-rosa a abraçar a base da retrete, o gato com a boca aberta a regurgitar uma bola de cotão numa tosse vigorosa, seca e única, a mulher (como se chamaria? Margarida?) enrolada no sofá numa pose leve, pose sem pose, despreocupada, de quem não se sonha perscrutada pela imaginação alheia, viva, do inquilino do prédio em frente. No dia 14 de abril a luz não se apagou às 22h. Não se apagou, porque não esteve ligada sequer. Não se via lá para dentro, saltar também não dava (parecia que dava, mas não dava), só em imaginação. Caixotes, o Adrien Mole a caminho de novo paradeiro, o gato dentro daquelas caixas de levar gatos em aviões, Margarida nunca mais, nunca mais acender e apagar luz (ainda havia de tentar todos os dias até junho), nunca mais aquela beleza frugal, aparentemente banal que mais ninguém vê, enrolada em si num sofá que quase que dava para tocar com a mão esticando o braço desde a janela da cozinha, o Gomes dos Recursos Humanos cabisbaixo nas reuniões de departamento e os sermões, a saliva dos cantos da boca do chefe Moreira em bolinhas brancas a preencher o vazio de um asco que não vem escrito em lado nenhum.
(Crónica publicada na VISÃO 1370 de 6 de junho)