“É branco, negro, cigano ou asiático?” O Governo criou um grupo de trabalho (GT) para estudar a inclusão no Censos 21 de uma pergunta inédita sobre a composição etno-racial da população portuguesa, uma questão polémica que a grande maioria dos países europeus não coloca.
Acontece que o Estado quer estatísticas Censitárias mas continua a não se comprometer com o que vai fazer com elas. Como aliás jamais se comprometeu com os portugueses ciganos fosse sobre o que fosse.
Com estatísticas, vai o Estado resolver o escândalo de existirem portugueses forçados ao nomadismo e a viver em ruínas e tugúrios, sem eletricidade ou água? Ou o escândalo da ausência de acesso ao emprego (até no Estado) devido a uma ciganofobia epidémica que nem sequer combate?
Em Abril de 1997 entreguei à Secretaria de Estado da Juventude um Relatório sobre “as Minorias Étnicas em Portugal”, resultante de pesquisa com ampla fundamentação estatística, em que conclui (para meu próprio espanto) que “entre a invisibilidade social inerente à pobreza e à exclusão social e a excessiva visibilidade negativa decorrente da estratégia de aculturação antagonista, os ciganos portugueses permanecem como a mais grave e escandalosa de todas as situações de racismo e xenofobia em Portugal”.
Os dados apontavam não para um ‘atraso’ habitacional, escolar ou no emprego, mas para situações de incomparabilidade com africanos vindos dos PALOP e asiáticos (indianos). No ensino superior e universitário as estatísticas do Estado, em 1998, indicavam a existência de quase cinco mil licenciandos africanos. Já quanto a ciganos – populações diaspóricas, altamente fragmentárias e sem Estados tutelares – nas universidades havia apenas meia dúzia, à época. Poucas dezenas, hoje. Sem qualquer futuro antevisto.
Podemos reencontrar essa incomparabilidade duas décadas depois, no contexto actual, apesar de o Estado ter feito ‘desaparecer’ este tipo de estatísticas. O Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo obteve de uma sondagem representativa, feita pela Universidade Católica a informação actual de que uma grande maioria – 90% – tem a percepção de que há discriminação em Portugal, de forma ‘frequente’ (40%) e ‘muito frequente’ (30%). Mas o que importa reter é que esta é a questão em que se regista maior diferenciação entre os respondentes – para 84% dos ciganos a discriminação acontece ‘muito frequentemente’, valores que descem para 39% entre os ‘negros’ e 29% entre os ‘brancos’. Ou seja, os valores para ‘brancos’ e ’negros’ são próximos. E não comparáveis com o registado pelos ciganos. Eles sabem porquê, o Estado parece não (querer) saber.
A sondagem dá ‘valor estatístico’ a tudo o que já se sabe há décadas sobre a Ciganofobia que vai desde líderes de partidos recém legalizados e de insultadores violentos e impunes, que incendeiam o espaço virtual, aos que colocam sapos em pastelarias e táxis, com a mensagem implícita: “não queremos ciganos aqui.” Esta sondagem corresponde também à falta de indignação política de eleitos e governantes, que vão varrendo o escândalo para baixo da mesa, criando pequenos Grupos de apoio às comunidades ciganas (GACI) sem projeto conhecido (além de enviar mais crianças para as escolas) e exigindo mais ‘provas’ e ‘informações’ estatísticas. Como se saber ‘quantos são e onde estão’ criasse subitamente a vontade política que sempre faltou a nível central e na generalidade dos municípios.
Os portugueses ciganos não são imigrantes e jamais deviam ter sido enquistados no pequeno gabinete do fundo de um Alto-Comissário para as Migrações (ACM) mas representados por uma Fundação para a Integração dos Portugueses Ciganos, em que estas populações tenham uma Direção pelo menos paritária e possam gerir os fundos provenientes da UE para investir na recuperação do atraso induzido por cinco séculos de racismo organizado a nível do Estado. O que exige o levantamento das resistências e obstáculos, que parecem aumentar, em vez de diminuir, quando se entrega o futuro dos Portugueses Ciganos a gestores ‘brancos’, tanto mais racistas quanto mais próximos deles, nas relações institucionais. A recuperação do atraso histórico dá passos desencontrados, mas tarda em voar. Será porque continuam a cortar-lhe as asas?
CHAMAM PROGRESSO A ISTO?
A partir da linha de base dos dados de 1997, o Estado criou organismos a que foi mudando o nome sem mudar a lógica (ACIME, ACIDI, ACM) misturando Imigrações internacionais com Portugueses Ciganos, na sua grande maioria sedentarizados na malha suburbana – mais uma forma de ‘confusão’ racista.
Graças à criação do Rendimento Mínimo Garantido (RMG), o número de crianças ciganas nas escolas aumentara 72% para cerca de seis mil em 1997-98. Como eram mais do que 1% do total e, segundo estudo do Patriarcado de Lisboa, de 2001, 45.6% não iam então à escola, é fácil de perceber que no seu total os Portugueses Ciganos são muito mais do que os 29 mil ou os 40 mil que ‘estudos sociológicos’ sem qualquer validade estimaram, a partir de consultas muito parciais e enviesadas às dioceses ou à GNR. Números validados pelo ACM (o qual, entretanto, ‘extinguiu’ a fonte mais válida e constantemente actualizada de análise comparativa inter-étnica de dados, sobre a evolução anual de escolarização, abandono e insucesso escolar, que se revelava catastrófico entre as crianças ciganas (Ana Maria Braga, Base de Dados Entreculturas). Quando a informação é inconveniente, permanecem os discursos e desaparecem as estatísticas.
Onze anos depois, no que respeitava aos Portugueses Ciganos, a situação não se alterara significativamente. Em Abril de 2008, a Sub-comissão para a Igualdade de Oportunidades e Família da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura iniciou uma série de audições sobre Portugueses Ciganos, a qual deu origem a um Relatório em 2009. ‘Esquecendo’ estrategicamente que nada pode ser feito sem vontade política, o Relatório de então omitia a ciganofobia popular e o racismo de Estado entre as “áreas de recolha privilegiada de informação, a educação, a habitação e o trabalho, na medida em que são expressão de direitos humanos, que explicitam também áreas instrumentais promotoras da dignidade humana e de uma plena integração cidadã.”
Um belo discurso. Num Relatório que não se cansa de listar as ‘culpas’ dos ciganos na discriminação negativa que vivem, é preciso chegar à página 42 (em 55) para introduzir a história da exclusão dos portugueses ciganos: “Ao longo destes cinco séculos é sabido que o Estado Português cometeu injustiças, promulgou leis discriminatórias, promoveu comportamentos abusivos, indutores da marginalização em que se encontra a comunidade cigana, da sedimentação de preconceitos, do fechamento das comunidades entre si. A dificuldade de acesso a habitação (integrada na malha urbana), a quase impossibilidade de emprego, o deficiente acolhimento nos serviços públicos, ou ainda a ignorância de traços culturais expressivos na educação e na cultura, são evidências deste comportamento discriminatório (…).”
É sabido, diz o Relatório. Por quem? Como a minha investigação de 2007, “Sintrenses Ciganos”, demonstrou, a generalidade dos técnicos que lidam com famílias ciganas não sabe. Pelo contrário. A “narrativa” que três quartos dos 75 técnicos entrevistados constroem contra os ciganos fariam engordar muito a ciganofobia de André Ventura, o novo líder da extrema-direita.
DA PASSIVIDADE À FÚRIA ESTATÍSTICA
Neste momento, passados mais dez anos, para esconder o insucesso da inanidade das ‘políticas’ que a Audição preconizava, surgiu a fúria de abrir uma questão racial no Censos de 2021, visando supostos interesses políticos de portugueses ‘negros’ e ciganos, que pretenderiam obter do Parlamento processos de discriminação positiva.
Dado que o caso dos ‘afrodescendentes’ e ‘negros’ e o caso ‘cigano’ são estatisticamente independentes, e pouco têm em comum, é fácil de perceber porque é que a introdução desta questão no Censos convém aos ‘negros’ e não convém aos portugueses ciganos. Para os ‘negros’, trata-se de importar as lutas de tipo affirmative action, com tradições americanas enraizadas nas Políticas da Identidade binarizadas ‘a Branco e Preto’. Isso é claro, pelo menos para Beatriz Dias, dirigente da Associação de Afrodescendentes, em entrevista ao Expresso: “É preciso assumir a recolha de dados étnicos para poder avançar com medidas de ação afirmativa, como a imposição de políticas de quotas de acesso às universidades e cargos na Função Pública”.
Já o mesmo não acontece nas duas representantes dos Portugueses Ciganos no Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo. O representante das comunidades ciganas e a coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas votaram contra. Duas dezenas de associações e ativistas ciganos como a Letras Nómadas também discordam, pedindo que “essas questões sejam relativas a nacionalidade e à ascendência e não à pertença ‘étnico-racial’, que tenderá a exacerbar o estigma que pesa sobre a população cigana portuguesa”.
Especialista em Sociologia das Desigualdades e em Estudos Ciganos, a coordenadora do Observatório, chama a atenção para que a própria constituição do GT é um acto de racismo (de Estado), e as suas conclusões inválidas dado que ‘tem um viés significativo’ em qualquer votação, uma vez que “tem na sua constituição representantes de duas minorias, a minoria afrodescendente e a minoria cigana, contando com quatro pessoas afrodescendentes e uma pessoa cigana”. Como afirma, os ‘negros’ forçaram uma votação, obtendo uma maioria de nove contra quatro, com uma abstenção, usando o “argumento da força numérica para fazer prevalecer a sua posição”. E questiona: “Sendo a minoria cigana contra a introdução daquele tipo de categorização e de questões e a minoria afrodescendente a favor, entre duas minorias, a opinião de uma vale mais do que a opinião de outra? Existe uma hierarquização entre minorias?”
Pelos vistos, para os objectivos pré-determinados de obter dados e posições favoráveis à introdução desta questão racial (e racista, como veremos), é claro que opinião de uma minoria sobre-representada vale mais do que a da outra, para o mais depressa possível ocultar esta trapalhada ‘democrática’ e entregar ao INE a sua execução técnica, como planeado.
Perante a insubordinação imprevista dos representantes ciganos no GT, de imediato dois membros da elite cigana – o Secretário de Estado de origem cigana, Carlos Miguel, e o Engenheiro Piménio Ferreira – se combinaram para fazer longas argumentações a favor, no Público de 9 de Abril, pretendendo fazer-nos ignorar que, no caso dos Portugueses Ciganos, as políticas não são nacionais, são decididas nas altas esferas da UE, de acordo com a pressão dos milhões de Ciganos Romenos e das suas organizações, ou resultam da lógica de organizações como a REAPN, que engolfam os ciganos nas Políticas da Pobreza à escala europeia, quando sobre o futuro dos Portugueses Ciganos pesa bem mais a ciganofobia actual, governamental, municipal e local, do que a pobreza daí resultante. Racismo é uma coisa, pobreza é outra bem diversa.
A QUESTÃO RACIAL NA EUROPA
Mas não foi apenas Maria José Casa-Nova, Coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, que se opôs a uma questão que contrapõe ‘brancos’ a ‘negros’, a ciganos e a ‘asiáticos’, porque considera que a recolha destes dados pode promover a legitimação das categorias raciais, e os seus efeitos negativos são maiores quando o Estado é o autor. Os riscos são também maiores, argumenta (lado a lado com os sociólogos Rui Pena Pires e João Peixoto, que também integravam o GT), quando há um recenseamento geral do que quando é feita uma recolha por investigadores ou num inquérito. Consideram também que aquelas categorias podem contribuir “para legitimar e naturalizar os fundamentos cognitivos do racismo” ou “para aumentar os riscos de apropriação discriminatória da informação”. Ou seja, de que têm mais a ganhar os racistas (e nomeadamente os ciganófobos) do que os cidadãos destas minoria de portugueses ciganos, que não precisam de estatísticas mas de Planos do Estado – planos por objectivos, divulgados, financiados, bem definidos temporalmente, anti-racistas e facilitadores da sua integração a todos os níveis (começando pela habitação das famílias e pelo garantir o acesso dos adultos a empregos, de modo a criar a sua autonomia económica, a par com a promoção escolar e cultural da comunidade). É aí que a discriminação positiva tem toda a razão de ser.
Numa altura em que se assiste ao retorno das religiões (contrapondo militarmente protestantes a islâmicos), ao retorno dos racismos na Europa (propulsionados pelas inundações de deslocados vindos da Síria e da Líbia) bem como ao retorno dos nacionalismos (do Grupo de Visogrado à Itália, à França de Le Pen e aos Brexitianos), a vocação racial dos estatísticos não podia chegar a Portugal mais a despropósito – como sempre imitando os piores exemplos (Norte-Americano e Britânico), pelas piores razões (alimentar as lutas de acção afirmativa dos afrodescendentes) e na pior altura, com aquele atraso de décadas própria deste país de retóricos e académicos, à beira mar plantado.