Já muito se escreveu sobre o excesso de relações familiares no Governo. E eu sou capaz de subscrever muito do que ficou escrito. Que o facto é suscetível de criar conflitos de interesse inultrapassáveis para quem tenha o coração no sítio. Que o facto é revelador do terrível isolamento em que vivem os profissionais da política. Nessa frente pouco mais posso adiantar.
Interessa-me muito mais discorrer sobre o tema do nepotismo. Não tanto para repetir o óbvio. E o óbvio é que acabamos por ter, nos gabinetes do Governo e em boa parte da Administração Pública, gente pouco qualificada para os cargos e profissionais de tudo e coisa nenhuma. Com todas as consequências daí decorrentes para o funcionamento de um Estado já de si gigantesco e que, povoado de néscios, tornado ineficaz por tamanha aversão ao mérito, se torna uma legalizada forma de esbulho grotesca e insuportável.
Aquilo para que quero chamar a atenção é para o lado oculto desta lua. E o lado oculto, o lado sobre o qual não tendemos a refletir, é que por cada primo, por cada sobrinho, por cada “filho-de-um-amigo-que-tem-imenso-mérito” que ganha um lugar de adjunto, de assessor, de suposto técnico, há um pobre enteado que bate com o nariz na porta de um emprego. Aquilo para que quero chamar a atenção é para o facto de este não ser, longe disso, um problema exclusivo do Estado. A celebrizada “cunha” é uma instituição pacificamente aceite nas empresas, nas sociedades de advogados, nos colégios e nos liceus, nas entidades reguladoras, nos hospitais e nas ONG. Aquilo para que quero chamar a atenção é para o facto de a terrível, generalizada e socialmente aceite instituição do nepotismo ser uma das ferramentas mais eficazes e mais cruéis de imobilidade social em Portugal.
Entendamo-nos. A “cunha” é a password, a palavra-chave, a senha mágica, para a autopreservação de uma suposta “elite” (um dia hei de escrever sobre elites e sobre o muito que gosto delas quando justamente definidas) muito pouco interessada em competir de igual para igual com o mundo lá fora. A “cunha” é a rampa inclinada, o obstáculo adicional, os metros excessivos que têm de ultrapassar todos quantos, na lotaria da vida, nasceram fora dos ridículos centros de poder e de influência de Lisboa e do Porto. E olhem que sei do que falo, logo eu que tecnicamente me qualifico para a categoria de “beto”.
E isto, meus amigos, gostem ou não da ideia, é o grande cancro social da nossa paróquia. Seguramente um cancro para a competitividade do País que impede a progressão dos mais aptos. Seguramente um cancro político que, ao negar a concretização prática do ideal liberal da igualdade de oportunidades, abre simultaneamente caminho à ideia marxista da igualdade de resultados e a todos os discursos populistas do mundo. Mas o nepotismo é sobretudo um cancro ético que nos devia envergonhar a todos.
Conforta-me, apesar de tudo, verificar que, malgrado o silêncio e a hipocrisia dos principais responsáveis políticos, algum clamor se tenha levantado na comunicação social e na sociedade. São estes sobressaltos cívicos que, na ausência de tudo o resto, nos fazem avançar e tornar mais civilizados.