Quando eu era tão pequena que os interruptores da eletricidade me desafiavam, lá em cima, muito mais altos do que agora se usa, interruptores brancos e redondos de baquelite, o meu pai, ao domingo de manhã, mandava-me ir comprar o jornal à tabacaria do Sr. Moreira. Receosa de perder as moedas, fechava a mão com muita força e corria pelo caminho de terra vermelha até ao largo onde se dispunham num quase semicírculo as lojas que serviam o nosso bairro e os bairros vizinhos, a peixaria da D. Alda, a padaria do Sr. Augusto, o lugar da D. Lurdes, a Sarita, Confecções e Moda, o minimercado Kitanda, a tabacaria, e por último, e já a fugir do meio círculo, a oficina do Sr. Tadeu que despejava, nos espaços adjacentes, pneus, manchas de óleo e todo o tipo de sucata que se vendia em Luanda. Com a maioria das lojas fechadas, o largo abandonava-se para ali, ainda mais feio no seu improviso desenrascado. Nem o largo nem o caminho para lá chegar eram alcatroados, mas os buracos e pedregulhos não me faziam diferença, o meu corpo ainda era tão leve que nenhum chão me detinha ou magoava. Àquela hora, o sol, longe de estar a pique, ia derramando já a sua inclemência, as flores murchavam provisoriamente, os cães estendiam as línguas no chão fresco, os pássaros atrasavam os seus voos, os vizinhos protegiam-se atrás das persianas corridas, e eu não parava de correr até à tabacaria.
A compra do jornal era feita rapidamente ao som do rádio roufenho que o Sr. Moreira pendurava num dos ganchos de metal enferrujado da parede e tinha como testemunhas o Roberto Carlos e o Nelson Ned, cada um mais rei do que o outro no seu póster de parede. Para além do jornal, as moedas transpiradas davam direito a um carolo na cabeça e a ouvir a piada do Sr. Moreira, Vai pela sombra, antes de o ver desaparecer atrás da tosse e da tralha que estava para lá do balcão, jornais, revistas, livros de quadradinhos, fotonovelas, berlindes, recargas de Flit para os mosquitos, cigarros AC que o meu pai fumava, pastilhas Gorila de morango que eu andava sempre a pedinchar. Assisava os passos no regresso a casa, o jornal nos braços com o mesmo desvelo que as outras meninas dedicavam às bonecas. Ainda não conseguia ler todas as palavras, mas sabia-as frágeis, se eu caísse rasgar-se-iam como a minha roupa ou a minha pele.
O meu pai esperava-me no quintal. Sentado na cadeira de tiras de plástico, verdes, de camisola interior cavada, à sombra da mangueira, a velhice e as doenças que o mataram ainda vinham tão longe, era fácil acreditar que não levariam a melhor daquele homem de cabelo preto puxado para trás, olhos verdes e mãos de pianista. Morávamos na quarta casa de um correr de oito, todas iguais no traçado e na modéstia. A nossa casa era a única que tinha duas mangueiras, uma enorme quase a meio do quintal e outra junto ao portão da entrada, raquítica, que os meus pais não impediram que crescesse quando um dos muitos frutos que caíam da primeira ganhou raízes. Os vizinhos não permitiam que as árvores se reproduzissem ou que o capim trepasse pelos pequenos muros de cimento que delimitavam as casas, desgostavam-se de tais desleixos com o mesmo afinco com que combatiam a rudeza daquele fim de mundo tomando Rezoquin e mantendo canteiros de flores iguais aos da Metrópole. Os quintais dos vizinhos, diferentes do nosso, tinham cães de guarda, lavadeiras de filhos às costas em panos do Congo, duches improvisados, sebes aparadas, mas nem por isso ficavam mais parecidos com os quintais ricos do Bairro de Alvalade. O remedeio é uma maldição mais difícil de esconjurar do que a pobreza.
Ia buscar o banco, que me serviria de mesa, o estojo com lápis e canetas, borrachas e afias e, já sentada no chão, recebia do meu pai as duas folhas centrais do jornal. Emprestava ao meu gesto a solenidade que via a minha mãe pôr na missa, especialmente no momento de ir tomar a hóstia. A minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, já se considerava demasiado adulta para passatempos de jornal, Só quero as palavras cruzadas, dizia, e eu, invejando o avanço que ela me levava, prometia a mim própria que um dia conseguiria ser mais velha do que ela.
O meu passatempo preferido era o jogo das diferenças, dois desenhos, aparentemente iguais que escondiam sete diferenças. Os desenhos começaram por parecer-me indistinguíveis, como era possível existirem sete diferenças se eu nem uma encontrava? Os detalhes, Bebé, os detalhes, insistia o meu pai. Não querendo desiludi-lo com a minha ignorância, e sabendo o Luís Manuel a olear a corrente da bicicleta no quintal vizinho, fui perguntar-lhe o que era um detalhe, É tão fácil que nem te vou dizer, respondeu-me, voltando à sua tarefa. A minha irmã, mais prestável, foi buscar o dicionário e apontou para o friso de dálias bordadas na toalha que a nossa mãe pusera no coradouro, mas nem assim consegui perceber o que era um detalhe.
Tudo existia ainda, para mim, em bruto, com a beleza e o terror toscos da infância. O amor aos meus pais e irmã, a coragem de subir às árvores e de entrar pelas ondas do mar, o medo do escuro e de ficar de castigo, existiam sem detalhes, como tudo o resto na minha curta vida. E tinha, sem o saber, a ilusão de que seria sempre assim. A mudança, mesmo que tão impercetível como as diferenças dos desenhos, era uma impossibilidade, eu queria crescer depressa para poder fazer tudo o que me apetecia, para ficar ainda mais igual ao que verdadeiramente era.
Enquanto não cresci, todos os domingos descobria diferenças nos desenhos, uma pétala a menos, o farol quadrado em vez de redondo, a tábua do baloiço mais fina, mas raramente conseguia encontrar as sete. Havia sempre qualquer coisa a distrair-me da empreitada, uma vizinha a desafiar-me para brincar, o cheiro do bolo que a minha mãe tinha posto no forno, a tentação de ir aborrecer a minha irmã. Então, inventava as diferenças em falta e punha uma bola a rodear o que o meu desassossego distorcia. A primeira vez que fiz batota temi que o meu pai me ralhasse, mas ele fez-me uma festa na cabeça e ainda hoje não sei se foi orgulho ou compaixão o que sentiu por mim.
Precisei de anos para perceber que estar desatenta é estar também desarmada, e que isso é mau. Precisei de décadas para perceber que estar desatenta é estar também desarmada, e que isso é bom.
Oh, como tenho saudades de não conseguir encontrar as diferenças.
(Crónica publicada na VISÃO 1360 de 28 de março)