Penso, logo existo. Olha que grande descoberta! — dirão alguns do cogito cartesiano, não sendo surpreendente que, com essa exclamação desdenhosa, queiram deixar subentendida a ideia de que a filosofia não passa de um amontoado de tolices. Escapa-lhes que, para Descartes, aquilo que o “eu penso, logo existo” tem de interessante é precisamente a sua absoluta evidência. Nessa medida, o cogito é de facto o inverso de uma “grande descoberta”. Para que serve, então? Já lá iremos. Por agora, observarei apenas que o conteúdo e o papel do cogito não raras vezes ficam incompreendidos.
Um exemplo dessa incompreensão foi o que me levou a escrever esta crónica. Encontramo-lo na última secção do último capítulo de um livro afamado — e merecidamente afamado, pelo que posso ajuizar. Isso mesmo: refiro-me a O Erro de Descartes, de António Damásio. Que erro é esse, o de Descartes? Segundo Damásio, é o erro de crer que a mente humana é incorpórea.
Damásio tem do seu lado a avassaladora maioria — por uma vez, que a maioria não seja esmagadora — dos filósofos atuais que se ocupam da mente. Estes, de uma forma ou de outra, rejeitam o dualismo cartesiano, também conhecido por dualismo das substâncias. Note-se que o termo “substância” tem, neste contexto, um sentido muito diverso do mais corrente. Uma substância é uma coisa propriamente dita, por oposição a um estado ou a uma propriedade de uma coisa. Para o dualista cartesiano, o nosso corpo e a nossa mente são duas substâncias: o primeiro, uma substância física; a segunda é a alma, concebida como uma substância puramente mental. Isto significa que a alma, a verdadeira residência de todos os nossos pensamentos, não é feita de matéria. Tão-pouco está no espaço — acrescentaria Descartes.
Um dualista das propriedades não vai tão longe. Ele crê que as propriedades ou os estados mentais — como estar irritado, estar a pensar que o cogito é uma tolice, ou estar as duas coisas ao mesmo tempo — não se deixam reduzir a propriedades ou a estados cerebrais, físicos. Ainda assim, descrê na alma cartesiana. Julga, portanto, que embora os estados físicos e os estados mentais sejam radicalmente distintos, estes últimos não deixam de ser estados de substâncias físicas, isto é, de corpos ou de cérebros individuais.
Não será de estranhar que estes dualismos, especialmente o cartesiano, colham pouca simpatia entre os cientistas que estudam o cérebro. Se essa atitude é um erro, não sei. Seja como for, o erro de Damásio que gostaria de apontar não respeita à questão delicada e complexa da relação da mente com o corpo. O seu erro consiste em ver no modestíssimo cogito a afirmação do dualismo das substâncias, que é uma tese metafísica ousada. Eis o que Damásio diz do “eu penso, logo existo”:
“Considerada literalmente, a afirmação ilustra exatamente o oposto daquilo que creio ser verdade acerca das origens da mente e da relação entre a mente e o corpo. A afirmação sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. E, como sabemos que Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente, a ‘coisa pensante’ (res cogitans), do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas (res extensa).”
Isto não é verdade. Considerado literalmente, o cogito afirma apenas uma conexão inferencial: do facto de que penso, segue-se que existo. Não poderia pensar sem existir! Sobre a origem e a natureza daquele que pensa, o cogito não afirma coisa nenhuma. Por presumir o contrário, Damásio oferece-nos, logo na sequência da passagem acima citada, um parágrafo desconcertante:
“No entanto, antes do aparecimento da humanidade, os seres já eram seres. Num dado ponto da evolução, surgiu uma consciência elementar. Com essa consciência elementar apareceu uma mente simples; com uma maior complexidade da mente veio a possibilidade de pensar e, mais tarde ainda, de usar linguagens para comunicar e melhor organizar os pensamentos. Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser.”
Neste parágrafo, sobretudo na última frase, Damásio propõe uma inversão do cogito. Assim, embora Descartes tenha defendido que
(1) existo porque penso,
a verdade é que
(2) penso porque existo.
O que dizer desta alegação? Para a avaliarmos, há que destrinçar uma ambiguidade no termo “porque” — há que separar causas de justificações. Quando se afirma “x porque y” pode-se estar a afirmar que y é a causa de x, como quando se diz “O chão está molhado porque choveu”. Todavia, pode-se estar antes a declarar que y é uma boa razão ou justificação para crer que x, como quando se diz “Choveu porque o chão está molhado”.
Poderemos atribuir (1) a Descartes, sem dúvida, mas só se o termo “porque” tiver aí um sentido justificativo: o facto de eu pensar é uma ótima razão ou justificação para acreditar na minha própria existência. É apenas isto que nos diz o cogito. Ao declarar “penso, logo existo”, Descartes não está a sugerir de forma alguma que o facto de ele pensar é a causa da sua existência. Assim sendo, como em (2) — penso porque existo — há que entender o “porque” causalmente, não faz muito sentido contrapor esta afirmação ao cogito.
É uma pena que o livro de António Damásio termine com uma interpretação infeliz do filósofo que lhe inspirou o título. É uma pena, mas nada que justifique rasgar as vestes. Eu, pelo menos, não espero que um neurocientista seja entendido em história da filosofia moderna. Aliás, que Damásio seja, com toda a probabilidade, o investigador português mais influente entre os filósofos torna o seu lapso imensamente desculpável.
Mas voltemos a Descartes. Que interesse terá então o seu cogito, se este diz tão pouco? É preciso atender ao fim que Descartes perseguia. Este fim era a certeza. Não a certeza meramente subjetiva, que será um intenso sentimento de convicção, tantas vezes precipitado, mas a certeza concebida objetivamente, isto é, como uma garantia absoluta de verdade. Ao perseguir este fim, Descartes enveredou pela via temerária de pôr em dúvida tudo o que admitisse a menor dúvida, por mais extravagante que esta fosse. E, de facto, Descartes chegou depressa a cenários de grande extravagância. Colocou a hipótese de um “génio maligno” — uma espécie de deus enganador que o iludiria quanto à própria realidade do mundo físico.
Algo ficaria a salvo de uma conjetura cética tão extrema como esta? Sim! É aqui que surge o cogito: como uma primeira certeza, muito desinteressante no seu conteúdo, todavia absolutamente inegável, absolutamente à prova de génio maligno. Descartes procura então a chave desta certeza, encontrando-a na intuição intelectual: é por vermos nitidamente, com a luz do intelecto, a verdade do “eu penso, logo existo” que podemos estar certos de que o cogito é uma verdade.
Confiante no poder da intuição intelectual, Descartes tenta depois demonstrar, sem deixar espaço para nenhuma dúvida, ideias realmente interessantes: que Deus existe e que a mente é uma substância incorpórea. Conclui também, para alívio do leitor, que o mundo físico afinal não é uma ilusão. O ceticismo cai por terra, derrotado porque primeiro se levou a dúvida tão longe quanto possível.
Hoje é bastante consensual que Descartes falhou. As suas provas da existência de Deus e da imaterialidade da mente não são propriamente equiparáveis a demonstrações geométricas, nem nada que se pareça. Ainda assim, o verdadeiro erro de Descartes — o erro de visar nada menos que a certeza — permanece muito instrutivo. E a sua defesa do dualismo das substâncias, note-se, continua viva na filosofia.
NOTAS
1. Extraí as citações de Damásio da página 254 da 25.ª edição de O Erro de Descartes, publicada pelas Publicações Europa-América. Nessa mesma página, Damásio concede ser “possível” que o cogito nada diga acerca da origem e da natureza da mente, mas afasta injustificadamente esta possibilidade.
2. O mais preeminente sucessor de Descartes na defesa do dualismo das substâncias é Richard Swinburne.
3. Estou grato a José António Pereira por ter apontado um erro numa versão anterior desta crónica.