A nostalgia de um Bloco de Esquerda iconoclasta e afastado da determinação das decisões fundamentais sobre a economia e sobre os direitos das pessoas é hoje partilhada pela direita política e por comentadores absolutamente insuspeitos de serem da esquerda radical ou sequer de esquerda. Esses comentadores e esses dirigentes políticos que fustigaram, durante toda a história do Bloco de Esquerda, a radicalidade do seu discurso e da sua agenda vêm agora denunciar a “institucionalização” do Bloco, a sua “descaracterização” e o seu “aburguesamento”. Agora, diante do crescimento do Bloco, assalta-os uma saudade inconsolável dessa força política que eles fustigaram e descredibilizaram. É, pois, uma nostalgia contraditória e, por isso, intrigante. Ou não.
Muitos deles vaticinaram, vezes sem conta, a morte do Bloco. Tinha terminado a agenda das causas fraturantes – proclamaram – e o Bloco era somente uma expressão do “marxismo cultural”, volátil, espuma. Era certo que ia acabar. Primeiro engano: não acabou, reforçou-se. Segundo engano: a agenda das causas fraturantes não se esgotou, porque a fratura da discriminação é funda e ramificada demais para ser irrelevante. Engano hábil, diga-se: o esgotamento da agenda fraturante não era análise, era desejo. E continua a ser: diante da nova intensidade assumida nos nossos dias pela luta antirracista, pela luta feminista ou pela luta contra a colonialidade do pensamento, voltam a dizer-nos que é forçado, que é postiço, que não tem chão. Tinham-no dito, exatamente assim, quando o Bloco se bateu pela descriminalização do consumo de drogas leves, pelos direitos de conjugalidade e parentalidade da comunidade LGBT, pela autodeterminação das mulheres, pela despenalização da morte assistida. Bradaram então, bradam agora e, de ambas as vezes, mostram que o seu combate político é contra a emancipação que conjugue igualdade e diferença.
Mas, mais do que tudo, o que verdadeiramente une os dirigentes e os comentadores de direita na sua crítica à “institucionalização” do Bloco de Esquerda é o que isso quer dizer do ponto de vista da substância política. Defensores da política tradicional, não seria sério fazerem a apologia de formas alternativas de atuação política. Ficava-lhes mal. Não, o que realmente os motiva não é a forma nem o estilo, é o conteúdo. Como sempre foi. O que justifica a sua denúncia da “descaracterização” do Bloco é a noção de que esta força política não está hoje confinada à agenda das “causas fraturantes” e que passou a ter poder, conquistado nas urnas e na aceitação social, para, por dentro das instituições, fazer infletir as políticas que eles preferiram sempre que estivessem vedadas à esquerda. O que os perturba não é o Bloco bater-se por votos no quadro da democracia representativa, é a força que esses votos dão ao Bloco para mudar as políticas que eles não querem por nada que mudem. O que os mortifica não é a suposta perda de rebeldia do Bloco, é a capacidade acrescida de canalizar essa rebeldia não só para os comportamentos mas para a economia e para os direitos sociais. O que os mobiliza é que as parcerias público-privadas na Saúde, a precariedade na Administração Pública ou a dignificação da carreira dos professores sejam hoje questões centrais na ação política do Bloco de Esquerda e que essa ação não se limite à proclamação, mas antes envolva toda a negociação política que seja necessária para acrescentar direitos e justiça em concreto.
Os que agora denunciam com afinco a descaracterização do Bloco criticaram com igual afinco a caracterização do Bloco que agora lhes é tão cara. E vem-me à memória a rábula em que, a sucessivos pedidos de informação de uma jovem, Ricardo Araújo Pereira respondia repetidamente “o que tu queres sei eu”. Sim, o que os dirigentes e comentadores de direita que andam tão preocupados com a suposta descaracterização do Bloco de Esquerda querem sabemos nós muito bem.