Marcelo Rebelo de Sousa é, enquanto constitucionalista, autor da “Constituição da República Portuguesa Comentada” (com José de Melo Alexandrino).
Para quem ande confuso, pensando que o Ministério Público (MP) é um órgão de soberania que goza de independência, talvez valha a pena consultar os artigos 219º e 220º da Constituição e ler o comentário clar e sucinto do atual Presidente da República (PR).
A ver se nos entendemos: ao MP compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
O MP goza de estatuto próprio e de autonomia “nos termos da lei”.
Como explica o atual PR, desde 1997 temos este resultado: “1º) o esclarecimento de que ao MP assiste uma função de “participar” (com outras entidades e órgãos, entende-se) na “execução” da política criminal, mas em caso algum na definição dessa política, da competência reservada dos órgãos de soberania (Assembleia da República e Governo); 2º) que o MP não goza de um estatuto de independência (por tantos desejado ou proposto) – daí a sua responsabilidade hierárquica – mas apenas de autonomia administrativa; 3º) que, portanto, é Administração Pública, sujeita aos poderes de controlo governamentais; 4º) que uma das facetas da autonomia do MP é a de que o exercício da ação penal se rege pelo princípio da legalidade – agora claramente explicitado”.
A Constituição é, como não podia deixar de ser, clara: o MP, com estas características salvaguardadas pela lei fundamental, é, na sua autonomia e em matéria de política criminal, aquilo que for definido democraticamente por lei.
Essa lei, nomeadamente o estatuto do MP, é competência da casa da democracia, isto é, da Assembleia da República, conforme dispõe o artigo 165º/p da Constituição. A lei que é aprovada pelo Parlamento não pode pôr em causa o âmago constitucional da autonomia do MP, mas é essa lei que a define, porque assim o quis a Constituição.
Evidentemente, para dar um exemplo, a lei não poderia pôr em causa a autonomia de investigação do MP, mas a democracia parlamentar tem margem de liberdade para decidir em serenidade acerca, por exemplo, da composição do Conselho Superior do MP. Não é aí que reside o âmago da autonomia (constitucionalmente relevante) do MP.
Quem diz o contrário confunde a tal autonomia administrativa da aqui Administração Pública, e, portanto, sujeita a hierarquia, como explica Marcelo Rebelo de Sousa, com independência, característica do poder judicial.
Marcelo Rebelo de Sousa dá como exemplo daquilo que seria uma compressão da autonomia do MP a introdução do princípio da oportunidade da ação penal (agigantaria o peso que o Governo já tem no sistema português, afirma). “No entanto, há que convir que não é mais tranquilizador, na ótica dos direitos dos cidadãos, a efetiva prática de idêntico princípio pelo MP (em particular sem prazos perentórios para o termo da investigação criminal envolvendo suspeições continuadas sobre os cidadãos”, escreve Marcelo.
Mais à frente, a propósito do artigo 220º (Procuradoria-Geral da República), Marcelo explica que “apesar de a Constituição falar na Procuradoria-Geral da República como órgão superior do MP, tem aparecido muitas vezes nessa posição o Procurador-Geral da República. E o facto de, sendo Administração Pública, se pronunciar sobre matéria de definição de política criminal (e não apenas de execução) tem acentuado uma função política nada conforme ao traçado constitucional”.
Marcelo dixit.
(Artigo publicado na VISÃO 1347, de 27 de dezembro de 2018)