De três em três meses recebo novos internos de diversas especialidades para aprenderem neuropediatria. Todos são diferentes, mas uns são-no mais que outros. Sempre tive muita dificuldade em memorizar os nomes das pessoas e tenho habitualmente que me esforçar para o conseguir. Quando os aprendo rapidamente, é por uma de duas razões: ou porque gosto muito ou mesmo nada daquela pessoa. Sendo assim, há internos que nunca mais esqueço, porque tinham particularidades que contribuíram de algum modo para enriquecer a minha vida. Lembro-me sobretudo daqueles que tinham um brilho nos olhos e uma sede enorme de aprender. Dos que antecipavam os meus gestos, dos que se sentavam no chão da consulta com as crianças, dos que me acompanhavam já fora de horas pelos corredores do hospital, dos que se comoveram com o sofrimento ou vibraram com as alegrias de uma família. Dos que tinham sede e fome de conhecimento e me perguntavam no fim de um dia de consulta:
– Como aprendeu?
Resposta difícil. Com quem e como aprendi? Lembro-me de, com quatro anos, assistir às aulas que a minha mãe dava em casa à Marina, a irmã dois anos mais velha, que aprendia a ler e a escrever. Ninguém dava por mim. Dizem que eu era tão tímida que, quando ia brincar a casa de outras crianças tinha vergonha de pedir para ir à casa de banho. Foi então surpreendente para os meus pais quando eu comecei a responder rapidamente às perguntas que a minha mãe fazia à minha irmã quando a ensinava. Aprendi a ler e a escrever sem nenhum esforço, ali ao lado, absorvendo naturalmente o que ficava no ar e passava defronte dos meus olhos. Da mesma forma aprendi a cozinhar. Adorava sentar-me na cozinha em cima de um pequeno caixote virado ao contrário e ver a minha mãe ou a empregada a descascar, temperar, remexer, misturar, cortar, triturar, provar…Logo que, de pé, pude chegar aos balcões e à banca, comecei a ajudar silenciosamente. Com oito anos sabia fazer arroz, cozer batatas, preparar uma sopa. Na escola aborrecia-me um pouco. O ritmo era lento e nem tudo me interessava. Desligava com facilidade e partia para o meu mundo de sonhos, onde vivia mais de metade do meu tempo. Lembro-me dos cheiros das outras crianças, às vezes tão maus…. Uma das minhas colegas escorria pus dos ouvidos, um líquido amarelo esverdeado, com um cheiro pútrido. Estávamos na Apúlia, em 1968. A pobreza era muita, eu era a única menina de sapatos e cabelo cortado. A única que tinha um sobretudo e uma pasta de couro para transportar os livros. Aprendi a respeitar as crianças que eram castigadas com reguadas pela professora porque não faziam os trabalhos de casa… Crianças franzinas, com fome e pouca roupa, que tinham de ordenhar, dar de comer aos animais, levá-los a pastar, tomar conta dos irmãos mais novos, carregar lenha, apanhar batatas, lavrar, semear, debulhar, amassar…. Aprendi o que era a injustiça e a desigualdade. Aprendi a ter vergonha de ter mais que os outros. Aprendi que tinha que defender os mais fracos, os mais pobres.
Aprendi a dar valor à família. Éramos nómadas, mudámos seis vezes de terra até eu ter dezasseis anos. Não tive o direito a ter amigos de infância. Mas tinha os irmãos e os primos. Éramos e ainda somos um bando unido e quando nos encontramos relembramos coisas só nossas e chamamo-nos pelos diminutivos que só nos permitimos entre nós. Continuamos a ter oito, nove anos, embora os cabelos sejam brancos, os joelhos deem estalidos, tenhamos sobrevivido a doenças, divórcios, mortes, tantas desilusões. Mas continuamos a ser o que de melhor em nós há quando nos juntamos.
Aprendi muito, muito com os livros. Tive a grande sorte de ter acesso desde pequena a muitos livros com muitas histórias de outros lugares e outras gentes com outros hábitos, maneiras de pensar e de agir tão diversas. Nem sempre compreendia o que lia pois a minha idade e pouca experiência não mo permitiam ainda. Mas continuava a ler e, mais tarde, às vezes com intervalos de décadas, revisitei muitos desses livros e de cada vez entendi-os de forma diferente. É… compreendemos, quando fazemos parte daquilo que nos é dito. Antes disso apenas lemos. Nada mais que isso. Por isso um livro pode ser lido, muitas, muitas vezes ao longo de uma vida. Tal como uma pessoa muito rica interiormente nunca se esgota num só encontro. Vale a pena revisitá-la, vezes e vezes sem conta e de cada vez nos surpreenderá.
Aprendi muito com o meu pai. A tolerar os outros. A refletir. A reconhecer como num espelho as minhas fragilidades. E a sarar as minhas feridas escrevendo.
Aprendi muito com a minha mãe. A seguir em frente “apesar de”. Endireitar as costas e seguir. Trabalhar para esquecer, para aguentar a dor. A ser autónoma. A nunca ter medo nem vergonha de arregaçar as mangas. A ter a certeza que, mesmo se tudo perdesse, recomeçaria novamente do nada, com a ajuda da minha cabeça e mãos.
Aprendi com alguns professores. Com alguns mestres. Com colegas. Com alunos. Com os meus doentes e as suas famílias. Aprendi fazendo. Ninguém aprende a conduzir ao lado do condutor. Um dia temos que nos por ao volante e começar a fazer asneiras.
Aprendi com os meus amigos. A abraçar. A divertir-me. A ousar. A arriscar. A não me queixar. A dar. A dar-me. Aprendi a deixar-me cuidar.
Aprendi com as minhas filhas. Que o amor pode ser avassalador. Que se pode amar incondicionalmente, dar tudo, perder tudo, humilharmo-nos até por esse grande amor maternal. Aprendi a cuidar, velar, esperar, consolar, ouvir até à exaustão, repetir, repartir amor, tempo, carinho; abnegar, calar, esperar, observar; aprendi a ter esperança; aprendi que posso ser surpreendida.
Aprendi com o meu companheiro de há 35 anos. A respeitar a natureza. A apreciar música. A gostar do silêncio. Que temos o direito de pensar e ser diferentes. A apreciar o humor inteligente. A não tolerar a mediocridade, o facilitismo, a grosseria, a “chico-esperteza”, o oportunismo.
Aprendi muito dizendo “não sei” quando não sei. Porque assumo a minha ignorância e vou estudar.
Aprendi com a minha professora de português, aos 10 anos de idade. Aprendi que um elogio público pode mudar uma vida para muito melhor. Passei a elogiar os outros frequentemente.
Aprendi e continuo a aprender com a minha vida. A não disfarçar as cicatrizes para não cometer os mesmos erros. A não fazer batota. A olhar de frente e admitir as perdas. A não ser falsa modesta quando me elogiam as qualidades. A fazer algumas cedências para poder continuar o meu caminho. A mudar (com muito custo!) por vezes de direção. A trabalhar arduamente para conseguir os meus objectivos. A fechar algumas portas que só me conduzem a maus lugares. A exigir muito de mim mas pouco dos outros. Aprendi que a maioria é covarde, fraca, sem carácter, mentirosa. Que são poucos, muito poucos, aqueles que conseguem dizer “o rei vai nu”. Aprendi que, apesar disso, continuo a gostar muito de viver. Que apenas tenho de saber rodear-me das poucas pessoas certas, e de plantas, muitas plantas e muitos cães, gatos, galinhas, cavalos…
– Com quem aprendeu? – pergunta-me de novo um jovem interno.
– Com tudo e com todos. Aprendi agora um pouco contigo porque me fizeste essa pergunta e me puseste a pensar. Penso que não há grandes regras para aprender. Tem somente que existir a “ânsia de”. Quem for inquieto e curioso vai encarar toda a sua vida como uma grande aventura cheia de oportunidades. E em cada obstáculo, sucesso, tropeção, encontro, desencontro, vai descobrir algo para aprender de novo.
E você leitor, como aprendeu?
Turiz, 23 de Dezembro de 2018